CRÍTICAS RÁPIDAS

Escrito por Fábio Rockenbach

Razão e Sensibilidade

( Sense and Sensibility, EUA, 1995 ) Direção de Ang Lee, com Emma Thompson, Kate Winslet, Hugh Grant, Akan Rickman, Tom Wilkinson





De longe a melhor revisão do mês. É ótimo ver que todo o frescor da adaptação dos sempre sisudos romances de Jane Austen não tenha sido apenas saboroso de assistir em seu lançamento, mas parece ter ficado ainda melhor depois de mais de 10 anos. É quase absurdo como o filme, na verdade, é uma espécie de novela, um dramalhão onde tudo se concentra em ditos e não ditos, em fofocas, pessoas que se intrometem na vida alheia, o rigor e a supervisão de uma sociedade fuxiqueira intervindo na vida das pessoas. Absurdo porque é delicioso de se assistir, e tão simples que chega a irritar a forma como Ang Lee desfila esse rosário de pequenas histórias e personagens de forma tão natural.
O mais genial em “Razão e Sensibilidade” é como o filme se sustenta em uma espinha dorsal chamada Emma Thompson ( autora do roteiro oscarizado ) e nela se apóia um elenco brilhante. Ela é a mais velha de 3 irmãs, que junto com a mãe é obrigada a abandonar a propriedade onde moram quando o pai e esposo morre. O filho do primeiro casamento herda a propriedade e influenciado pela esposa não tem intenção de ajudar sua meia-família. Em uma sociedade que sobrevivia graças à aparência e ao dinheiro, 4 mulheres pobres não constituem um panorama muito otimista. Os floreios dos homens que surgem na vida delas, as tramóias sociais envolvendo aparências e a busca pelo casamento e o amor movem toda a narrativa. Mas o melhor é a forma como Elinor, a personagem de Thompson, estabelece um diálogo de austeridade com a platéia: a emoção reprimida, as aparências, a doação e a entrega, sempre seus sentimentos em último lugar, sempre as verdadeiras emoções represadas, escondidas. Toda essa construção explode de forma climática no soluço de emoção contida mais genial da história do cinema. De longe, é o melhor filme baseado na obra de Austen e uma das grandes obras dos anos 90.


Fugindo do Inferno

( The Great Escape, EUA, 1963 ) Direção de John Sturges, com Steve McQueen, James Garner, Richard Attenborough, Charles Bronson, Donald Pleasance, James Coburn



O clássico por excelência dos filmes de fuga, o “Conde de Monte Cristo” dos campos de prisioneiros da segunda guerra mundial. O carisma desse sucesso de bilheteria e crítica não se apóia apenas nos nomes do elenco ( Steve McQueen nunca esteve tão à vontade, e o resto... bem, resto é insulto, basta olhar os nomes brilhantes envolvidos ), mas na forma como transforma um tema sério em entretenimento puro. O campo de prisioneiros americanos e britânicos é quase uma colônia de férias, com a diferença de que a bola de beisebol não pode ir além da cerca de arame. Toda a construção dessa história empolgante se sustenta em uma base que afronta o bom senso: os prisioneiros que mais se notabilizaram em fugir dos campos alemães são todos reunidos em um local só, um campo dito de fuga impossível. “Reunir todas as laranjas podres em uma cesta”. Não poderia haver idéia mais imbecil, mas como era de praxe retratar os alemães de forma pouco fulgurosas, tal concentração é um convite às mentes criativas de homens especializados em fugir dos buracos onde eram enfiados. Acompanhar essa trama é um passatempo delicioso, e a cena, logo no início, onde eles tentam fugir no meio de trabalhadores russos é um exemplo do frescor ingênuo e puramente aventuresco de um filme que teve a coragem de resolver suas diversas tramas de fuga da maneira menos fácil. O destino desses inglórios trapaceiros - mesmo uma cena de execução em massa não mostrada explicitamente – torna tudo mais amargo, e por isso mesmo, inesquecível.


13 dias que abalaram o mundo

( Thirteen Days, EUA, 2000 ) Direção de Roger Donalson, com Kevin Costner, Bruce Greenwood, Steven Culp, Dylan Baker



Roger Donaldson é um operário dedicado, que costuma sempre entregar o que se espera dele (“Cocktail”, “Sem Saída”, “O inferno de Dante”, “O novato”, “A Experiência). As parcerias com Kevin Costner são seus melhores trabalhos. Particularmente, “13 Dias que Abalaram o Mundo” ia no caminho certo para ser o melhor dos seus filmes, com austeridade e pés no chão. Sem emoção, sem exageros, revivendo a Crise dos Mísseis de Cuba quando a URSS decidiu armar mísseis nucleares em Cuba, foi descoberta pelos Estados Unidos e gerou o período de tensão que mais aproximou o mundo de uma terceira guerra mundial. A recapitulação desses eventos, vistos a partir, unicamente, dos interiores da Casa Branca, é primorosa na maior parte do tempo, ainda que evidenciando apenas um lado. Tecnicamente, e em sua narrativa, funciona muito bem – e o bom elenco ajuda muito. É fácil acompanhar esse tipo de trama ao lado de Costner, ator com empatia fácil e garantida. O melhor dessa história é perceber que Donaldson não está tão preocupado em revisar a história, mas contar a história de 3 amigos: os irmãos Kennedy e seu acessor Kenny O’Donnel. Tudo gira ao redor dessa amizade, e a forma como ele estabelece o presidente Kennedy como uma pessoa comum, apesar de admirada, e sempre sobre tensão é o melhor aspecto da história. As trocas de farpas e diálogos entre o trio é o que conduz o filme e estabelece o elo de ligação com o público, e atuações como as de Baker ( como Robert McNamara ) e Culp ( como Bob Kennedy, inclusive fisicamente semelhante ) auxilia nessa construção. Donaldson está tão interessado nisso que acaba se emocionando: é quando ele começa a ver o mito Kennedy maior do que o personagem, e a glorificação, as frases de efeito e gestos sob encomenda eclipsam o que vinha sendo brilhante na sua primeira metade. Ele cedeu ao ícone e ao discurso ufanista – mas que se releve seus méritos de ter feito uma obra com força própria e permanente.


Colors, as Cores da Violência

( Colors, 1987 ) Direção de Dennis Hopper, com Robert Duvall, Sean Penn, Maria Conchita Alonso



Colors foi um retrato polêmico da instável situação de violência que já atormentava as grandes cidades norte-americanas na metade da década de 80, principalmente quando a guerra de raças começou a se tornar insustentável. Não era apenas uma questão de negros e brancos, mas de hispanos, mexicanos, índios e negros lutando por bairros e territórios de tráfico. Colors foi um dos pimeiros filmes a abordar essa questão de frente. Se parece beber na fonte de alguns clichês desse tipo de tema, é bom ter em mente que foi um precursor. Penn, na pior fase de sua carreira, é um tira jovem e cheio de esperanças, que torna marginais e as ruas seu campo de batalha particular, para desespero do velho e experiente policial interpretado por Duvall, raposa das ruas que sabe que mais do que aplicar a lei, é melhor fazer acordos e guardar favores para sobreviver nas ruas. Em torno dos dois – e por causa deles – a tensão racial se desenvolve como uma teia pré-programada, onde todos sabem que a corda vai acordar, apenas não sabem quando e como. Hopper não estica a corda para testar sua resistência, apenas segue sobre ela com segurança.


Fuga do Século 23

( Logan’s Run, 1976 ) Direção de Michael Anderson, Michael York, Richard Jordan, Jenny Agutter, Roscoe Lee Browne, Farrah Fawcett-Majors



A idéia geral que move “Logan’s Run” é mais poderosa do que a canastrice dos efeitos, principalmente o confronto com o robô no gelo assim que ocorre a fuga da cidade. Michael Bay bebeu litros e litros do barril mal conservado deste filme para filmar “A Ilha”, mas se a madeira é velha e mal conservada, o líquido é saboroso. Ele pode resistir a qualquer efeito especial tosco, a qualquer representação datada ou teatralidade. O filme de Anderson também é notável por entender que quando se fala de um futuro pós-apocalíptico, a presença de ícones facilmente identificáveis facilita, e muito, a absorção da platéia no interesse do filme. E vemos Washington tomada de mato e ruínas, o capitólio destruído e a Biblioteca do Congresso ser, num misto de ironia e esperança, a residência do velho sobrevivente: em meio a livros, quadros, fotografias e toda a sabedoria do “velho mundo”, reside a única esperança de que alguém um dia se lembre disso. Na sociedade do futuro, todos vivem somente 30 anos, até passarem por um processo de “renovação” em uma cerimônia conhecida como “carrossel”. Mas alguns sabem que por trás disso existe uma outra realidade. A fuga dessa sociedade não é permitida, e para impedir isso existem os patrulheiros, como Logan. Logan, que descobre que tudo é uma farsa, a renovação é a morte e existem sobreviventes fora dos muros hermeticamente fechados da sociedade inodora onde vive. É saboroso caminhar pela Washington devastada e ouvir o velho sobrevivente afirmar que “vivíamos nessas casas, em grupos, várias pessoas, mas acho que elas se tornaram pequenas demais para nós.” É a idéia de “Fuga do Século 23” que sobrevive e voa mais alto do que a precariedade da produção e deve ser sempre lembrada.


Um Ato de Liberdade

(Defiance – 2008 ) Direção de Edward Zwick, com Daniel Craig, Liev Schreiber, Jamie Bell, Alexa Davalos



Os irmãos retratados neste filme de ação pouco comum de segunda guerra de Edward Zwick na verdade buscam acima de tudo vingança. Zus é frio, duro, não se importa com a morte. Tulia é centrado, aparenta ser mais sábio, mas no fundo busca esconder a fraqueza, e começa sua jornada buscando vingança. O Filme de Zwick não tem as tradicionais pitadas de heroísmo grandioso, apresenta uma competição entre os irmãos que fundam uma comunidade no meio da floresta da Bielorrúsia para resistir ao avanço nazista na região. É uma comunidade que represa seu ódio, e ele explode em uma cena que mesmo não apelando para o visual, consegue ser forte, quando um soldado alemão é capturado pelo grupo. Mas Zwick também não ousa, e cede aos chavões do cinemão. "Um Ato de Liberdade" podia ser grande se não cedesse a uma pouco compreensível tendência a se diminuir em suas idéias. Mas tem uma das melhores frases do ano quando entra no terreno da política e do poder naqueles tempos de guerra na europa: "“No oeste, um monstro com bigode pequeno. No leste, um monstro com bigode grande. É tudo o que preciso saber sobre política”.



Operação Valquíria

( Valkyrie – 2008 ) Direção de Bryan Singer, com Tom Cruise, Kenneth Branagh, Bill Nighy, Tom Wilkinson, Terence Stamp



Quem foi Stauffenberg? Talvez tivéssemos respostas se fosse outro ator, menos famoso, menos astro do que Tom Cruise no papel principal. O filme de Singer é correto, reto, direto, e esse é o problema. Foi feito para ser visto como espetáculo hollywoodiano, quando poderia enveredar por outros caminhos mais nebulosos. Se interessava mais saber o que houve com os envolvidos no plano para matar Hitler - já que o resultado todos sabem qual foi - porque, então, conhecemos tão pouco sobre eles, e principalmente, porque o enlace familiar deles acaba se resumindo a flashbacks e breves passagens? Os personagens secundários são os melhores apresentados em uma história que funciona em algumas seqüências de tensão, mas o filme não expõe a verdadeira verve dos envolvidos : o que os move não é salvar a Alemanha, mas seus próprios rabos acima de tudo. Que vale o filme é Wilkinson, dando de relho no elenco principal, ao interpretar um general de interesses dúbios que fica em cima do muro e se torna um dos grandes empecilhos ao plano por sua indireta condição. No fundo, se fosse para ser com Cruise, que o filme seguisse como começou: todo falado em alemão. Pelo menos haveria algum cheiro de personalidade. “Operação Valquíria” é tão correto que acaba sendo esquecível. Esperava-se mais do diretor que já fez “O Aprendiz” e “X-Men 2”.



Sem Lei e Sem Alma

( Gunfight at the OK Corral, 1957 ) Direção de John Sturges, com Burt Lancaster, Kirk Douglas, Rhonda Fleming, Jo Van Fleet



Clássico lembrado por muitos, “Sem lei e sem alma” é um filme reto. Não tem a sinuosidade marcante de outros clássicos do gênero. Não tem profundidade, não tem emoção, não tem reações. Não ousa, não transgride, não tenta ser, nem durante um segundo sequer, politicamente incorreto. É, até, correto demais. Os bons da versão deturpada de Sturges não morrem. Apenas se ferem, levemente – por mais que a história real tenha colocado a sete palmos da terra um dos irmãos de Wyatt, isso não pode acontecer na história reta e correta de Sturges. O resultado dessa linha reta são interpretações rasas – Burt Lancaster está pálido, uma tentativa de resgatar um herói que não pisca ao tomar suas decisões, mas que é tão natural quanto poderia ser Schwarzenegger interpretando Hamlet. A teatralidade excessiva, marca de alguns dos filmes da época, ajuda a enfraquecer toda a caracterização dramática de uma história poderosa. Aqui, essa história soa mera desculpa para um conto quase infantil dividindo o bem e o mal, os bons e os maus. De tudo que cerca a história de Earp, em “Sem Lei e Sem Alma” é o cemitério de Boot Hill que mais alcança os ouvidos, através da melodia que corta o filme em diversas ocasiões contando em forma de versos a história, mas que desaparece na importância quando se percebe que tudo o que ela canta é uma versão errada, fraca e amadora da famosa história. Como o famoso tiroteio dá nome ao filme, ele se torna uma seqüência longa no clímax do filme. É pensada não como um duelo, que realmente foi, mas uma troca de tiros que, novamente, retira da situação toda a tensão e o suspense que as outras versões souberam explorar. É uma pena tendo em vista os nomes dos envolvidos.


A Duquesa

( The Duchess, EUA, 2007 ) Direção de Saul Dibb, com Keira Knightley, Ralph Fiennes, Charlotte Rampling, Dominic Cooper, Hayley Atwell



Visão que tenta fazer um paralelo da futilidade da sociedade no século XVIII com os tempos atuais, e faz isso da forma mais direta possível: a Georgiana Spencer vivida por Keira Knightley é antepassada da Diana Spencer que morreu em um túnel perseguida por Papparazzis. Ambas tinham características semelhantes: vividez, disposição, brilho próprio em meio a um ambiente seco e árido de frivolidades. Mas Saul Dibb cede à idéia de se render à sua protagonista. O problema é que, se Keira Knightley é linda – e parece casar bem com esse estilo de filme – ela não é, ainda, uma atriz esplendorosa a ponto de segurar a atenção de um filme inteiro. Pior, de ser o coração de toda a atenção do público a esse filme. “A Duquesa” tem um ponto forte na atuação contida de Ralph Fiennes, mas não deixa marcas na memória. Melhor assistir em alguma exibição na televisão, casualmente, zapeando canais.


Atos que desafiam a Morte

(Death Defying Acts, EUA, 2007 ) Direção de Death Defying Acts, com Catherine Zeta-Jones, Guy Pearce, Timothy Spall, Saoirse Ronan, Jack Bailey, Aaron Brown



O Ilusionista e O Grande Truque, com mágicos de mentira, frutos da imaginação, acabam sendo mais palpáveis do que a história do verdadeiro mágico e ilusionista que inspirou todos, o quase lendário Houdini. Incrivelmente, aqui Houdini é coadjuvante, ou uma desculpa para o que parece ter sido pensado como um veículo para dois nomes conhecidos que, no entanto, em nenhum momento exalam a mínima química que fazer o público acreditar na intensidade do que vê – e isso é essencial para dar o mínimo de veracidade à trama, já que esses sentimentos são catalisadores.
Qual a razão, afinal, do filme de Gillian Armstrong falar de Houdini ou transformá-lo em um background de luxo para uma história que nunca diz ao certo onde quer chegar? O interesse romântico – que não empolga – torna o que já era fraco em um drama fácil, açucarado. O público acompanha as duas na busca por saber mais sobre o mágico, talvez o grande astro pop de sua época - antes de saberem o que significava isso - mas o roteiro não se esforça para jogar alguma luz em uma das mais misteriosas personalidades da história. A audiência acaba ludibriada, sem entender muito além do jogo de obviedades que o roteiro reserva nesse pseudo-aprendizado. Pior, o roteiro joga com possibilidades e parece não percebê-las, especialmente quando enfoca a parceria entre Houdini e seu assistente: qualquer cena dos dois tem mais profundidade do que as ditas tramas principais, como que evocando uma história que pedia para surgir, mas ficou eclipsada. Ninguém percebeu que estava nessas entrelinhas que surgem brevemente a verdadeira história que ainda não foi contada no cinema? “Atos que Desafiam a Morte” joga com muitas possibilidades, e não trilha nenhum caminho. Fica sempre na metade.

Próximas críticas rápidas:
Geleiras do Inferno, Che – O Argentino, O Homem que odiava as mulheres, Superman 2 – The Richard Donner Cut, A Última Amante , Jasão e o Velo de Ouro, Sinbad e o Olho do Tigre, Guerra de Noivas.

Império do Sol

Escrito por Fábio Rockenbach





“O Império do Sol” é menos um filme de guerra do que uma história de como um ser humano pode se esconder dentro de uma cápsula e fazer do mundo exterior não um completo desconhecido, mas um universo moldado à suas vontades, e nele sobreviver. Principalmente quando se é uma criança. No fundo, é disso que se trata aquele que talvez seja o mais descaradamente apelativo filme de Spielberg: a história de uma guerra que é transformada em um mundo particular. Em que um menino molda as circunstâncias e as interpreta de tal maneira a fazer com que as resistências se dobrem. A cápsula na qual ele se refugia é sua paixão por aviões. O mundo que ele cria é tão seu que se torna um mini-cosmo que recheia de importância coisas que pareceriam banais. Que não se veja “Império do Sol” como um filme de guerra ou a odisséia de um menino sobrevivendo aos horrores da guerra ( o mesmo tipo de frases prontas que surgem sempre que se fala no filme ). É uma história que quase foi posta a perder pela vontade de Spielberg de suplantar seu material, sem perceber o quão bom ele é.

A paixão anormal por aviões do jovem Jim, ironicamente, acaba separando-o do seu mundo, mas o mantém vivo no novo universo. É por causa de um avião, no caso um de brinquedo, que ele se separa dos pais durante a confusão que se instala em Shangai quando tropas japonesas invadem a cidade durante a 2ª Guerra Mundial. Mas é irônico constatar que são vários os “mundos” que surgem na trajetória de Jim – uma história autobiográfica do escritor JJ Ballard. O primeiro mundo irreal é aquele no qual ele vive com seus pais no meio da sociedade britânica que se forma em Shangai. Uma realidade tão fantasiosa que faz com que o garoto enxergue as mazelas nativas do local como uma curiosidade mórbida. Não à toa, ele chega a dizer em certo momento que “é inglês, mas nunca pisou na Inglaterra”. É um inglês, mas seu país soa tão falso e distante para ele que talvez por isso alimente a vontade de entrar para o grupo americano durante os anos de cativeiro no campo de concentração.

Sua Inglaterra de faz de conta é sustentada sob o fio de uma navalha em uma terra longínqua e repleta de tensões. O segundo mundo que ele conhece é o mundo das ruas, que surge como um choque. E o terceiro é aquele que surge moldado pela sua fantasia, mesclado com a realidade do campo de concentração para onde é enviado, e onde se relaciona com uma nova sociedade, formada por britânicos e americanos, especialmente pelo seu ídolo, Basey ( John Malkovich ).

Durante sua passagem por esses três mundos, Spielberg pincela as descobertas de Jim sempre alimentadas pelo amor incondicional que ele nutre por aviões. Faz uma homanegam a “...E O vento Levou”, com um imenso pôster do filme onde a cena do incêndio em Atlanta pintada no cartaz compõe um paralelo interessante com as ruas da cidade destruídas pelo avanço japonês. Essa pequena composição é mais interessante do que as inúmeras cenas em que Spielberg, de forma desnecessária e superficial, cria seqüências de beleza plástica vazias. Dessa síndrome nem a trilha de John Williams consegue se desvencilhar – apesar de pomposa, ela deixa claro a vontade do filme de ser maior do que realmente é.


Mas é interessante lembrar que mesmo seqüências que soam forçadas são importantes porque determinam que Spielberg constrói seu filme sobre um ponto de vista fantasioso, sob a visão de Jim. É uma indicação muito sutil, mas que vai se cristalizando pouco a pouco. A cena de Jim prestando continência e sendo retribuído por 3 pilotos japoneses é um exemplo. Esse tipo de reação impensável à determinadas situações reflete que aquela realidade é a realidade criada pelo seu protagonista, sua bolha, sua válvula de escape. E nesse mundo, as coisas acontecem para alimentar a visão idealista de Jim, ainda que ela soe inverossímil – e a comprovação dessa tom disfarçado como realidade vem no piloto que, sorrindo abana para Jim enquanto bombardeia o campo de pouso japonês ao lado do campo de concentração. É uma visão lírica da guerra mesclando realidade e fantasia. É quase como uma coleção de lembranças que, por mais que se saiba serem irreais, sejam tão palpáveis ao verdadeiro protagonista, o JJ Ballard que escreveu a história autobiográfica e colaborou no roteiro.

Por trás das cenas criadas quase sob encomenda para o ápice do sentimentalismo – em muitas das vezes totalmente barato – de Spielberg existe a todo instante um murmúrio que sussurra ao espectador, como que dito pelo próprio Ballard: “Ei, você pode achar que não cola, mas é assim que EU me lembro daquele tempo, quarenta anos atrás. São as MINHAS lembranças de garoto de uma época totalmente surreal para uma criança”.

É baseado nessas idéias que “Império do Sol”, se assim compreendido, pode deixar de ser excessivamente tolo e exagerado, e se enquadrar quase como um sonho relembrado, e não um filme real de guerra. Não é. Provavelmente, nunca foi, apesar de algumas vozes contrárias.
É uma lembrança surreal com quase três horas de duração, como as que nós mesmos temos de certos eventos que, com o passar do tempo, por mais que jurem ter sido diferentes, acabem se transformando em memórias que nós construímos e alimentamos. E aí nem adianta dizerem que não foi bem assim. Para Ballard, aquele piloto realmente acenou para ele durante o bombardeio, os soldados japoneses realmente lhe prestaram continência e por alguns instantes, ele jurou que a bomba atômica era a alma de uma recém falecida subindo aos céus. Essa é – acima das tentativas extremamente forçadas do diretor – a grande beleza que se sobressai de “O Império do Sol”, além da presença forte de Christian Bale. Seu olhar destroçado na cena final cria um momento que é difícil de ser ignorado e vale mais do que todas as criações supostamente engrandecedoras do diretor nas quase três horas anteriores.

Rebeldia Indomável

Escrito por Fábio Rockenbach





Paul Newman, de “Golpe de Mestre”. Paul Newman, de “Butch Cassidy”. Paul Newman, de “Desafio à Corrupção”, “Inferno na Torre”, “Marcado pela Sarjeta”. Mas acima de tudo, Paul Newman, de “Rebeldia Indomável”. Se fosse preciso escolher um filme – e é uma possibilidade idiota – para definir o que representou Paul Newman na história do cinema, bastaria a indicação de “Rebeldia Indomável”para apresentar os predicados de um dos maiores mitos da história do cinema, digno representante de um tempo onde tudo em uma produção podia girar em torno de uma interpretação, do carisma infindável de um astro, da própria essência dele em cada frame de um filme.

“Rebeldia Indomável” transpira Paul Newman em cada segundo, e por mais que pareça exagero tantas afirmações em torno do carisma do grande astro em seu papel mais famoso, o de Luke Jackson, sua presença é tão hipnótica que confirma a idéia de que, hoje, tempos como o de “Cool Hand Luke”não existem mais, porque os grandes astros, da forma como existiam antes, não existem mais ( e não é demérito a todo o talento absurdo de atores como Pacino, DeNiro e outros ), e que exemplos do que acontece aqui no filme de Stuart Rosenberg são únicos. O filme é a apoteose de um ator. Tudo gira em torno dele, tudo é feito por ele, tudo responde a ele.

O Luke de Newman é um rebelde por natureza, preso por um crime insignificante e condenado a dois anos de trabalhos em uma colônia penal rigorosa em suas normas e convenções. O lugar errado para um homem que jamais se dobrou a nenhum tipo de regra, mesmo sem saber ao certo porque ele age assim. Faz parte de sua natureza, ele não pode evitar – como fica claro na conversa que ele tem com sua mãe ( Jo Van Fleet, admirável em poucos minutos em cena, sentada, atingindo um nível de interpretação que muitos atores apenas sonham em uma carreira inteira ). Uma característica indissociável de Luke, que se percebe desde a luta de boxe célebre com Dragline ( George Kennedy, ganhador do Oscar de coadjuvante, enquanto Newman foi indicado pelo desempenho) , primeiro seu desafeto, e pouco a pouco dependente do sopro de vida e inconformidade de Luke. Luke era o filho mais amado ( “Sempre se ama mais a um filho do que a outro”diz sua mãe, com amargor ) mas não correspondeu äs expectativas, simplesmente porque jamais se dobrou a atender à expectativas de ninguém.A presença de uma personalidade tão forte em um ambiente fechado só pode causar problemas, e causam.

Mas a imposição do sistema tentando dobrar a personalidade do prisioneiro é desafiada com uma simples frase: “Vai ter que me matar!” E como dobrar um homem que se dispõe a comer 50 ovos em uma hora apenas para ganhar uma aposta? Um homem que afirma sem pudores que, em determinadas situações, mais vale a pena não ter nada, nem um ás na manga, mas se sentir livre para fazer a jogada que bem entender?

Essa veia inconformista transpira em cada poro da interpretação de Newman. A ironia do sistema, na figura do diretor da colônia penal, é alegar falta de comunicação ( toda a frase se tornou Cult e popular depois que o Guns n`Roses a usou na íntegra na introdução de uma de suas músicas, “Civil War”). Esse tipo de reação ao sistema e ä sua forma de comunicação e suas normas tornou o personagem de Luke em um ícone do inconformismo. “Me ame, me odeie, mas prove que está aí” grita ele, na chuva, para Deus, esperando uma resposta – que, obviamente, não surge. Esse ressentimento com os rumos da própria vida ainda surgem em uma cena memorável, onde Newman toca e canta "Plastic Jesus" após perder a única pessoa que parecia entendê-lo.

O sorriso de Newman cai como uma luva para transparecer ironia e uma madura sensibilidade ao tema em resposta ao “Ele é nosso”pregado pelos guardas da prisão – a própria encarnação do sistema controlador, representada principalmente pelo chefe dos guardas que nunca mostra seus olhos, sempre se esconde atrás dos óculos espelhadas que refletem o mundo da colônia penal. O sorriso de Luke, ao finalmente se dar conta de que eles – os guardas, a prisão, a vida, o sistema, as regras –“ jamais bateriam nele novamente” sela com chave de ouro uma obra que atesta o esplendor máximo de um dos maiores atores da história do cinema. “Rebeldia Indomável”é essencial.

Corrida contra o Destino

Escrito por Fábio Rockenbach





Encarado como um dos ícones libertários de uma geração perdida em seus rumos, no começo dos anos 70, “Corrida Contra o Destino” de Richard Sarafian, permanece como um dos mais fortes símbolos daquele tempo. “Cego guiando cego”, como diz a certa altura desse Road-movie que é um brilhante retrato social e de época o DJ Super Soul, ele mesmo o cego que comunica-se com o ex-piloto de corridas Kowalski, um entregador de carros que corre contra o tempo para viajar de Denver a São Francisco em 15 horas a bordo de um Dodge Challenger 70 branco, que ele deve entregar dois dias depois. Kowalski é o símbolo maior de uma geração – não necessariamente os jovens – que estavam “prensados” no meio de uma revolução social que deixou a todos atônitos, sem rumo. Ele próprio encara a estrada que atravessa paisagens desoladas e o deserto como uma fuga. Para onde, exatamente, nem ele sabe. Só o que é concreto no filme de Sarafian é que sua trajetória alucinada, em alta velocidade, atrai a polícia de diferentes estados, que acabam sempre ficando para trás. Uma hora, porém, tudo tem que acabar.
O herói ( ou anti-herói ) de Sarafian, não por acaso, nunca é plenamente justificado ou conhecido. Muita gente prega que ele acelera alucinado para pagar a aposta que fez com um amigo, mas é bom lembrar que antes mesmo de fazer essa aposta ele já afirma que precisa sair o quanto antes, e que não pode esperar. As razões não são conhecidas, e não interessam. Enquanto o mundo parece girar em torno da jornada de Kowalski - que cada vez mais torna-se elemento de culto e atenção da mídia e da população graças ao empenho de Super Soul em transformá-lo em um ícone (“ a última alma livre da América, centauro motorizado perseguido por fascistas e corruptos em suas máquinas”) – outros modelos de comportamento daquela época indefinida cruzam seu caminho, e como surgiram, desaparecem. São dezenas de personagens que aparentemente não têm função na trama – a dupla de policiais, o casal gay que tenta assaltá-lo na estrada, a comunidade religiosa, a hippie que anda nua em uma motocicleta, os imbecis que invadem a estação de rádio do “crioulo cego” – mas que se transformam no guia para compreender que Kowalski está fugindo da incerteza, de sua própria vida, de seu próprio destino. Silencioso, contemplativo, misterioso, ele nunca se deixa entender por completo. É uma corda que liga o espectador à toda uma época, e o irônico é que, por mais que corra e desafie a ordem instituída, ele não é um criminoso, não pretende ser um.Super Soul lhe adverte que ele pode fugir da polícia, mas não pode escapar do deserto, onde acaba se perdendo em uma das seqüências do filme, encontrando um velho caçador de cobras e uma comunidade religiosa que canta hinos a Jesus. Talvez Kowalski, afinal, não estivesse buscando uma fuga, mas uma parada final. Ao som de uma trilha contagiante, cortesia de Jimmy Bowen, Bobby Doyle, Big Mamma Thornton e principalmente, JB Pickers, “Corrida contra o Destino” marca na memória com seus personagens, seu inventário de ideologias e seu final atordoante. Eu fiquei alguns segundos parado quando tudo terminou, mas a sensação fica para sempre, correndo em um Dodge Challenger quase mítico...

OBS: Não confunda com a refilmagem de 1997, totalmente descartável. Além de perder todo o sentido de retrato de época e de cultura de uma geração desorientada, a refilmagem ainda inventa uma desculpa para os atos de Kowalski, totalmente dispensável. Alguém não entendeu o filme quando o assistiu...

Afundem o Bismarck

Escrito por Fábio Rockenbach





Não é por acaso que “Afundem o Bismarck” de Lewis Gilbert é mais conhecido como um semi-documentário do que, propriamente, um filme de ficção. Todo o desenrolar da trama, baseado em livro de CS Forester, é conduzida de forma documental, extremamente burocrática, sem sub-tramas de destaque – ou ao menos que consigam emergir com algum destaque – complementando a trama principal. Mas essa reconstituição da operação deflagrada pelo comando naval aliado para afundar o Bismarck, couraçado de guerra que era o orgulho da frota alemã e o mais poderoso navio singrando os mares em 1941, não é chata para quem gosta do tema. Soa educacional, mas fácil de assistir.

“Afundem o Bismarck” lembra muito “A Caçada ao Outubro Vermelho”, mas a temática é tão óbvia que o fato do filme de McTiernam beber dessa fonte não significa nenhuma inspiração. Obviamente, a dinâmica da história de 1989 é mais ágil, menos didática, mais absorvente. O que não significa, também, que “Afundem o Bismarck” seja enfadonho, mesmo que seja um filme onde muitas das emoções e conflitos não saiam do gabinete – pelo menos as que têm alguma profundidade à trama. Mesmo essas, porém, não são aprofundadas a um nível minimamente compreensível para elementos do roteiro que recebem tanta menção, como todo o plot envolvendo o filho de Sheppard, o oficial interpretado por Kenneth More que assume o comando das operações navais aliadas justamente quando o Bismarck é avistado em seu ancoradouro na Noruega. Se a trama paralela envolvendo o filho de Sheppard serve para demonstrar o alcance das emoções aparentemente inexistentes do personagem, simplesmente não precisaria ser mais do que mencionado, porque não evolui nas poucas cenas em que ele aparece. É um filme onde as emoções e conflitos não saem do gabinete e ali se estabelece o único núcleo interpretativo de peso (onde se destaca Dana Wynter como Davis, assessora particular de Sheppard)

O almirante Lutjens de Karel Stepanek, grande vilão do filme, é um escalador militar, um homem que admite ter sido negligenciado, e usa sua posição – e o navio – para ser visto, celebrado e bajulado. Sua petulância e auto-suficiência são a derrota do Bismarck. Lutjens é uma caricatura, típica da época em que o filme foi feito, apresentado mais como um personagem imaginado ( vilanesco, obviamente ) do que humano. Olhos esbugalhados, frases de efeito que não se enquadram em um vilão minimamente real (nenhum oficial alemão na guerra dizia algo como “Nunca se esqueçam que são nazistas”).

Um dos maiores problemas do filme de Gilbert é não estabelecer no público a dimensão e importância da caçada que conduz toda a trama. Ele pouco mostra do poderoso Bismarck. Falha, assim, em estabelecer a dimensão da ameaça que movimenta todo o comando naval aliado – os efeitos, baseados em cenas de documentários e maquetes não prejudicam o filme como muitos afirmam. O maior erro é que em nenhum momento a grandiosidade e o poder do Bismarck é convincentemente apresentado ao público.

Historicamente, na cronologia dos acontecimentos, o filme é quase impecável, empatia ampliada pela participação de Ed Murrow, um dos mais famosos repórteres da história do jornalismo norte-americano, citando sua célebre reportagem "This is London...", considerada uma das três maiores da história do jornalismo – mas falta um ritmo crescente de tensão e interesse. É linear em seu ritmo, nunca amplia ou o diminui. Quando chegamos ao ponto culminante da caçada, tudo termina como se fosse apenas mais uma página do roteiro. Não a ação em si, mas a construção do clima narrativo torna-se tão fechada quanto o roteiro linear. O estilo documental de “Afundem o Bismarck” acaba sendo os dois lados da moeda: é o grande mérito pela autenticidade, e o calcanhar de aquiles pela falta de emoção. Nada que admiradores do gênero venham a reclamar muito.

Milagre em St. Ana

Escrito por Fábio Rockenbach





A história narrada em "Milagre em Santa Ana", baseado em romance de James McBride, merecia ser contada, porém Spike Lee não talvez fosse o mais indicado para fazer isso. Mas mesmo que a verve racialmente inconformista de Lee se eleve acima de outras potencialidades da história, isso não justifica que seu filme, lançado em setembro do ano passado nos Estados Unidos só venha a chegar aqui nas telas grandes em Abril, como se anuncia. Principalmente porque, lá fora, já foi lançado em DVD e Blu-Ray.

Lee anunciou aos quatro cantos que sua intenção era recuperar uma história esquecida e lembrar que os negros também deram sua vida durante a segunda guerra mundial - e que, enquanto lutavam pela democracia, eram mais bem tratados na Itália do que em seu próprio país. Não há inverdades na afirmação de Lee. Longe, também, de se criticar a lembrança de um episódio real - obviamente romantizado na tela - da participação pouco lembrada do chamado Batalhão Búfalo, formado apenas por negros, na campanha aliada na Itália. Mas em alguns momentos, a veia de protesto do cineasta de "Faça a Coisa Certa" e "Malcom X" se torna forçada demais. Quase destrói uma narrativa que, mesmo circundada por esses momentos e discursos forçados, melhora, e muito, em sua metade final, depois de um início bem conduzido, quando nos anos 90 um velho funcionário dos correios, negro, repentinamente mata um homem a sangue frio usando uma pistola alemã Luger, em pleno local de trabalho. No seu apartamento, a polícia encontra um artefato valioso dado como perdido na Itália após a Segunda Guerra Mundial.

"O Milagre em Santa Anna" apresenta seus defeitos após esse prólogo. Desde muito cedo, estabelece alguns clichês necessários para se apontar os "brancos maldosos e estúpidos" e os negros usados como bala de canhão, tratados como mentirosos, como homens sem honra. Lee coloca seus oficiais brancos - com exceção de um, interpretado por DB Sweeney, que deve ter ficado feliz em ganhar uma graninha para aparecer, ao todo, por 2 minutos na tela - como homens racistas, preconceituosos, estúpidos ao extremo. É um desses oficiais que não acredita que um grupo de seus homens ultrapassou uma linha defensiva alemã em um rio, mandando ignorar o pedido de seus soldados por apoio aéreo. Quatro dos homens de um pelotão massacrado no rio sobrevivem, mas acabam entrando cada vez mais em território controlado pelos nazistas. Acabam encontrando um jovem órfão italiano ferido, e o levam a uma aldeia na Toscana, onde fazem contato com os moradores, poucos dias depois de os nazistas massacrarem 560 moradores inocentes do vilarejo de Sant'Anna di Stazzema.



Lee se alterna entre erros e acertos. O início é confuso - algumas bombas perdidas surgem do nada apenas para justificar certos acontecimentos - e arrastado. Ele cresce ao estabelecer relações entre quatro negros e a população local do vilarejo. Está nessa relação a base do discurso do diretor quando afirma que os negros se sentiam mais bem tratados no exterior do que em seu próprio país. Mas não é como denúncia e inconformismo que "O Milagre de Santa Ana" funciona bem, e sim como um pequeno drama de guerra composto por personalidades distintas, em um ambiente inóspito. A relação dúbia entre dois soldados do grupo e uma jovem italiana, e a relação entre o gigante Train e o jovem órfão valem mais do que todas as tentativas de Lee usar a guerra como discurso anti-preconceito ou as cenas em que um movimento de câmera triunfante e uma trilha engrandecedora surgem na tela para enfatizar alguma fala apoteótica de um personagem. É curioso, mas apesar desse relacionamento meio lírico soar chato em alguns momentos, talvez pelo garoto, ele é incrivelmente convincente, graças principalmente ao bom desempenho de Omar Miller como o "gigante de chocolate".

Mas é notório também que, se Lee não abandonou a velha tendência de usar o cinema como veículo de protesto, ele também amenizou boa parte de suas declarações. O diretor apresenta na figura de um oficial alemão e de um jovem soldado capturado ( também alemão ) um outro lado da guerra que poucos filmes, mesmo recentes, pensaram um dia acentuar. Apresenta uma bem conduzida seqüência de combate no vilarejo em seu clímax final, não se preocupa em poupar seus personagens e não se esquiva de encerrar essa história elevando a moral e a emoção do público, em uma seqüência final idílica meio deslocada, mas congruente com as intenções de Spike Lee. Outro diretor talvez se preocupasse mais em recuperar essa história do que em fazer uma denúncia, e assim talvez se preocupasse também em criar personagens mais palpáveis, mas que não se tire os méritos de Lee sobre o que sobrou de bom no filme, principalmente para quem gosta de recuperar aquele período da história através do cinema - só ignore os exageros dramáticos em prol da mensagem.

PS: John Leguizamo deve ter implorado por um papel após o elenco estar fechado. Só assim para justificar a aparição completamente sem sentido dele em dois minutos, em uma cena que pode até ter a intenção de justificar as questões de destino, predestinação e milagre da história, mas cuja sua participação é totalmente gratuita.

Austrália

Escrito por Fábio Rockenbach





É difícil começar a falar de “Austrália” sem apontar, primeiro, os principais motivos que fizeram a ambiciosa superprodução de Baz Luhrmann fracassar, a despeito da boa bilheteria internacional que começa a colher para recuperar o investimento de US$ 130 milhões. Mas talvez, de todos os problemas que possam ser apontados, o maior deles se chama, justamente Baz Luhrmann. O australiano pisou em território desconhecido e nitidamente perdeu o rumo. Colocou o pé no deserto de Nunca-nunca, caiu como bois da manada de um precipício buscando seu norte. Dividiu seu filme em 3 partes, não deu a elas uniformidade e abusou do desejo de ser grande.

Os adjetivos encontrados na rede ao filme o apontam como um novo “E O Vento Levou”. Há quem diga que Luhrmann se espelha em John Ford em determinados momentos. Isso é diminuir demais a força do filme e do diretor citados. Não chega nem perto. Talvez o que mais incomode, e fique mais visível, é a maneira como Luhrmann apresenta um filme na meia hora inicial e mude completamente de tom dali para frente. Os primeiros trinta minutos de “Austrália” são exagerados, histéricos, teatrais da mesma forma que o diretor fez “Moulin Rouge”, e simplesmente não combina. Principalmente porque tudo isso é esquecido depois, vai para o ralo. Por que, então, recorrer a esse estilo de narrativa pseudo-cômica no seu início? Porque contribuir nesse início para amealhar as críticas ao desempenho de Nicole Kidman em cenas pretensamente engraçadas, mas completamente fora do tom?

Kidman é uma inglesa que vai até a Austrália encontrar o marido, dono de Faraway Downs, fazenda de gado que incita a cobiça de outro grande criador. Encontra o marido morto e descobre que o capataz da fazenda a está roubando. Sem ajuda de ninguém, exceto de Drover ( Hugh Jackman ), um boiadeiro rústico, decide levar ela mesma seu gado através do país para vendê-lo ao exército, e enfrenta pelo caminho os capangas do rival de seu marido. E este é o segundo filme dentro de Austrália, após o início trôpego e sem força. O terceiro filme surge com o bombardeio japonês à cidade portuária de Darwin e a luta para recuperar Nullah, uma criança mestiça que ela adota como filho e é levado a uma ilha misisonária para ser “reeducado conforme as leis de Deus”.

Se a intenção de Luhrmann era fazer uma homenagem à sua Austrália natal ( com um elenco, também ele, todo australiano, que tinha Russel Crowe como primeira opção para o papel de Jackman ) tudo o que ele conseguiu foi uma colcha de retalhos com menções distantes à história do país e ao misticismo que cerca os aborígenes, ou à chamada “geração roubada” de crianças levadas de seus pais por serem nativos. É mais uma história sobre segregação e costumes nativos – um tanto mistificados em excesso – do que um romance, que só engata na sua metade final, mas ainda assim sem a química necessária entre Jackman e Kidman. O personagem principal, na verdade, é Nullah, que na pele do jovem Brandon Walter rouba o filme e eclipsa os atores mais experientes sempre que está em cena.

Mas há teatralidade demais. Há pompa em excesso, cenas cuidadosamente planejadas para parecerem épicas ou magistrais – como a primeira aparição de Jackman, por exemplo. A falta de objetividade e de rumo entre as duas histórias e o tom dado pelo diretor, completamente confuso sobre como tratar seu filme, prejudicam a unidade de “Austrália”. Ao contrário de “E O Vento Levou”, onde tudo centra-se em Scarlett O’hara, aqui há vários centros, e nenhum sólido. Toda a beleza plástica de Luhrmann está presente – e ele é um exímio artesão visual – mas é uma pena que muitas dessas cenas soem vazias e gratuitas. O filme de três horas poderia ser reduzido para 2 horas com mais ritmo e uniformidade. Luhrmann faz uma bela homenagem a “O Mágico de Oz” usando ( e muito ) “Somewhere over the Rainbow”. Talvez seja sua declaração particular de amor ao seu país, também chamado popularmente de Oz – a tal ponto que, em uma cena, um dos personagens diz a outro que é hora de voltarem para casa. Como Dorothy, no filme de Victor Fleming, a resposta é “Não há lugar como nossa casa”. A diferença é que aqui, depois do arco-íris, não há para o público muita coisa para a qual voltar. Extremamente bonito, é verdade, mas vazio.


O Casamento de Rachel

Escrito por Fábio Rockenbach





A sensação quando assistimos a “O Casamento de Rachel” é a de que somos um dos membros da família do noivo que recém está conhecendo a família da noiva, às vésperas do casamento. Como se fôssemos convidados a conhecer a família com um olhar fisicamente próximo, mas cujos pequenos detalhes vão surgindo revelação a revelação, sem pressa, mas sempre com um olhar privilegiado. Jonathan Demme não tenta em nenhum momento ser didático, e preserva a história de uma família em pedaços para que ela seja absorvida pelo público pouco a pouco, até que este, enfim, se torne quase um membro dela. Em alguns momentos, Demme despedaça o espectador tamanha a carga emocional e raivosa. A vontade é de reagir, mas podemos apenas olhar.

Apesar de toda a base desse drama forte e profundamente humano estar centrado em uma absolutamente fenomenal Anne Hathaway, como Kim, a jovem que sai de uma clínica de reabilitação e volta ao seio da família na véspera do casamento da irmã, Rachel, é a força do elenco que dá mais sobriedade a uma história que fala de vício, culpa, rejeição e falta de rumo. E é um elenco extraordinário. Somente com grandes atores – apesar de o público não conhecer a maioria deles, com exceção de Debra Winger, a mãe de Kim, dona de uma das cenas emocionalmente mais fortes do filme – essa história consegue fugir do lugar comum de qualquer tipo de drama familiar envolvendo ex-viciados. Kim retorna a um lar onde ela não se sente bem por remoer a culpa da morte do irmão no passado, e por sentir que todos:

a) Ou não a querem por perto
b) Ou a bajulam demais, para que ela não se sinta mal num ambiente onde muitos não a querem por perto.

Kim é a ovelha negra, ela sente que não faz parte de tudo aquilo, e não consegue disfarçar sua percepção. É direta, cínica, desafiadora, mas acima de tudo, enfrente seu problema de frente e ama sua família. É um retrato real, não caricaturado. Hathaway constrói uma personagem que também bate de frente com a irmã, que guarda dela profunda mágoa. As duas, como crianças, disputam as atenções. Uma por só saber falar de sua reabilitação, como se o mundo girasse em torno disto. A outra cansada dos esforços da família em salvar a irmã e querendo, apenas por dois dias, que sua vida e seu casamento sejam o centro das atenções. ( a ponto de interromper uma discussão áspera com Kim para anunciar sua gravidez para todos, o que deixa a irmã furiosa e o público dividido ).

Demme faz uso de uma câmera nervosa, mas não faz por puro preciosismo visual. Ela amplia essa reação da platéia de ser um observador privilegiado captando detalhes de uma família extremamente comum em seus amores e problemas, mas única pela quantidade de dramas particulares e conflitos interiores captados a conta gotas, administrados com maestria. É preciso maturidade para fazer um filme como “O Casamento de Rachel” sem cair em clichês dos filmes de gênero, e para saber terminar essa história sem o sentimentalismo comum, ou sem cair na tentação de apelar para o caminho mais fácil. Demme consegue isso – e não importa o sucesso da cerimônia ou da nova família que se cria nesses dois dias, mas os reflexos de cada relação, de cada frase ou desabafo, na vida de cada um.

Tanto melhor quando esse quadro é pintado com atuações magníficas e um diretor seguro, comprovando que ainda sabe do riscado.


Um Golpe à Italiana

Escrito por Fábio Rockenbach

(The Italian Job, EUA, 1969 )
Direção de Peter Collison, com Micharl Caine, Noel Coward, Raf Vallone, Benny Hill, Rossano Braz




Se você assistiu “Uma Saída de Mestre” com Mark Whalberg, Charlize Theron e Edward Norton e ficou curioso para conhecer o original “Um Golpe à Italiana”, com Michael Caine, esteja bem ciente que a refilmagem de 2003 puxou apenas a idéia de um golpe realizado na Itália e o uso das Mini Coopers na fuga. E só. “Um Golpe à Italiana” é, acima de tudo, uma diversão ligeira, uma comédia com toques de noonsense embalada pelo típico ritmo da época. Não tenta ser séria, não prima pela atenção aos mínimos detalhes do suntuoso golpe que dá título ao filme. Na verdade, não quer essa seriedade. Exala um charme próprio do início ao fim, sempre conduzido por um Michael Caine nitidamente se divertindo à beça com seu personagem – e tem como coadjuvante de luxo um Noel Coward impagável como um lorde britânico expert em patrocinar grandes golpes, preso (?!) em uma penitenciária nos Estados Unidos, de olho em todos os movimentos do trabalho patrocinado por ele na Itália.


Em alguns momentos, a completa inverossimilhança de algumas situações beira o ridículo, mas o desenrolar da ação mostra, aos poucos, que tudo é uma grande brincadeira. O trabalho em questão é roubar quatro milhões de dólares transportados por um comboio da Fiat em Turim. Para isso, o grande grupo de simpáticos trapaceiros comandados por Charlie Croker (Caine) investe em sabotar o sistema de tráfego de Turim, driblar os olhos atentos da Máfia italiana e se empenhar em uma rota de fuga maluca que tem tudo para dar errado, mas como não poderia deixar de ser, se transforma na grande graça do filme. É na meia hora final que “Um Golpe à Italiana” justifica toda a atenção que captura do espectador – apesar de o filme inteiro ser orquestrado em torno do golpe, a maior parte dele é gasta na construção de seus personagens e na apresentação do que se configura como uma grande brincadeira, uma diversão, apesar de ser o “grande golpe do século XX”. A presença da máfia como oposição ao grupo poderia ser melhor explorada no momento do golpe e o noonsense de algumas situações pode acabar atrapalhando um pouco – em determinados momentos, as tiradas cômicas acabam ficando deslocadas – mas mesmo isso não tira o sorriso em ver Noel Coward regozijando-se na prisão, aplaudido até por guardas, após o trabalho bem realizado. A fuga em si, se não tem a edição tresloucada da refilmagem, é uma diversão só, apesar de ter algumas seqüências completamente sem sentido, reforçando o sentido de uma grande brincadeira com ( e para ) o espectador.


Tudo termina no embalo irônico de “This is the self-preservation society” e um final simplesmente genial – que ainda motiva algumas discussões sobre o que terá, afinal, acontecido. Esses 5 minutos finais são tão geniais que, sozinho, compensa as falhas de um roteiro com argumento brilhante mas furos óbvios. É preciso ver para crer, mas a última frase de Croker no filme, e o insólito de sua situação deveriam ser mais lembrados como uma das grandes cenas do cinema. Termina “Um Golpe à Italiana” de forma magistral, e é impossível não sorrir quando sobem os créditos. O cinema, definitivamente, é muito divertido quando não se leva a sério.

O Despertar dos Mortos

Escrito por Fábio Rockenbach

(Dawn of the Dead, WUA, 1979 )
Direção de George Romero, David Emge, Ken Foree, Scott H. Reiniger




“Quando não houver mais espaço no inferno, os mortos andarão na terra.”
Dos cinco filmes que George Romero dirigiu marcando a filmografia do terror com mortos-vivos, contribuição inestimável do diretor ao gênero e ao cinema desde 1968, “O Despertar dos Mortos” talvez seja o mais rico em leituras e permanência. Ele pode não ter o ineditismo e todo o background aterrorizante de “A Noite dos Mortos Vivos” (não exatamente o terror gráfico, mas o terror sugerido de estar preso em uma casa no meio do nada, à noite, com um exército de zumbis cercando a casa ) nem a violência visual de “O Dia dos Mortos”, apenas para ficar na trilogia clássica. Mas “O Despertar dos Mortos” transcende em tantos pontos o que se vê na tela que acaba se tornando, acreditem, um retrato de época que, passados mais de 30 anos, continua atual. Quantos filmes conseguem isso?
“O Despertar dos Mortos” não é, exatamente, um filme de terror no sentido pleno da palavra. Não há o medo explícito, o susto. Há, isso sim, o medo de estar se olhando no espelho quando se expande o universo habitado por um grupo de sobreviventes, um exército de mortos e um imenso shopping center. Esse pequeno núcleo transforma-se no todo de qualquer sociedade moderna atual. A maneira como Romero nos bestifica tal qual seus zumbis soa deliciosamente irônica e surpreendente.
“Por que eles vêem aqui?” pergunta um dos dois policiais que acompanha dois jornalistas numa fuga de helicóptero enquanto o mundo é assolado por legiões de mortos-vivos, em uma continuação direta do clássico de 1968.
“É instinto. Devem lembrar de algo, esse lugar deve ter sido importante em suas vidas” responde outro membro do grupo. Abaixo deles, zumbis bestificados, lentos, “animais movidos a instinto” movem-se como idiotas no Shopping, sobem escadas rolantes, vagam a esmo, batem de cara em vidros de lojas, nada muito diferente do que faziam quando tinham inteligência. A comparação é até assustadora. O grupo de sobreviventes, por sua vez, encontra no shopping sua própria versão do éden, com lojas, bancos e supermercados à disposição para brincarem de consumistas, movida pelo sonho de consumo: a impunidade aos seus atos, a liberdade de se pegar o que quiser na meca do capitalismo. Nesse paraíso, o dinheiro perde valor. Os sobreviventes poderiam viver eternamente em seu refúgio, sem precisar sair, se relacionar, encontrar outras pessoas (ainda mais com rádio, fliperama e televisão ).
Romero sempre usou os filmes de sua série como metáforas à sociedade, críticas mordazes a estilos de vida e comportamentos. Seus mortos-vivos sempre representaram mais do que simples bestas comedoras de carne humana. Em mais de uma oportunidade, “O Despertar dos Mortos” nos diz que os grandes culpados pelo caos social não são os zumbis, mas os homens racionais. É um confronto de homens contra homens que começa o filme – uma seqüência de pequenas cenas que compõem um quadro literalmente animal de caos urbano e racional. E são os homens quem, ironicamente, acabam com o paraíso do pequeno grupo, abrem as portas ao exército de mortos, assinam a própria sentença de morte, movidos pela selvageria e a impunidade.
O máximo dessa declaração de ironia de Romero surge na trilha ora alegre, ora irônica, completamente distinta daquela que se espera de um filme de terror. Surge como um canto tribal quando o grupo se prepara em uma loja de armamentos. Torna-se quase infantil ao mostrar zumbis em escadas rolantes. Alcança seu ápice ao mostrar caipiras e militares encarando o caos como um alegre acampamento de verão, movido a churrasco e tiro ao alvo nos zumbis que surgem no horizonte. A sociedade é animal, somos mais canibais do que pensamos, principalmente em grupo. O maior terror de “O Despertar dos Mortos” não está na maquiagem extremamente simples ou nos efeitos visivelmente limitados em alguns momentos, mas no alcance assustador das entrelinhas da história de Romero. E esse tesouro não está disponível para todos os filmes.

O Estigma da Crueldade

Escrito por Fábio Rockenbach

(The Bravados, EUA, 1958)
Direção de Henry King, com Gregory Peck, Joan Collins, Stephen Boyd




“Fui juiz, jurado e carrasco.”

A trama de Philip Yordan não é rasa, como parece a uma primeira vista. Longe disso, aliás. Mas Henry King também não é, propriamente, um Howard Hawks, ou um John Ford. Nas mãos de cineastas como eles, “O Estigma da Crueldade” ampliaria em diversas vezes sua densidade emocional. Nas mãos de Henry King, um operário dos tempos de ouro de Hollywood, é um filme de estúdio. É uma pena.

A crueza da interpretação de Gregory Peck, quando bem utilizada, rendia momentos saborosos. Ela até cai bem em aqui, como Jim Douglass, rancheiro misterioso que chega à pequena cidade de Rio Arriba, próximo à fronteira com o México, para presenciar o enforcamento de 4 bandidos. As razões do estranho são obscuras, mas aos poucos se revelam quando os quatro conseguem fugir e raptam uma jovem do povoado. Douglass lidera o grupo que parte no encalço deles, motivado por questões pessoais: ele acredita que os quatro são os homens que mataram sua mulher, meio ano atrás. Mas, um por um, à medida que eles os alcança, algo parece estar errado. Douglass não acredita, mas todos juram não saberem quem é sua esposa, ou sequer onde fica seu rancho.

Não é à toa que King era um dos favoritos do estúdios, muito ligado a Zanuck: era um cineasta que, se é reconhecido pela produção, não se destaca muito pela qualidade. “O Matador”, “A Canção de Bernadette” e “Almas em Chamas” são dos exemplos mais lembrados da carreira. “O Estigma da Crueldade” é uma mostra de todas essas verdades em torno do diretor: operário dedicado, mas pouco inspirado, King até ensaia um bom uso do cinemascope posto à disposição para a produção, mas não ousa. Mantém-se no básico com sua câmera e no óbvio na montagem. Não consegue manter um ritmo constante, e se apóia no carisma de seu ator principal, econômico em gestos e palavras, mas afeito à personalidade do personagem. Stephen Boyd toma conta da tela quando aparece, como um dos bandidos – um ano antes de ser Messala em “Ben Hur” – e Lee Van Cleef, antes se se consagrar na Itália, repete o mesmo papel de "Matar ou Morrer," como um reles capanga. Mas o melhor do roteiro de Yordan é o aproveitamento de Henry Silva como Luján, o mais enigmático dos bandidos. É também a base onde se assenta a compreensão da obsessão torta de Douglass, e o seu desespero. Mas é aí também que está o maior problema: com tamanho material, King poderia ter feito uma obra-prima orientando seu clímax para esse encontro. Foge do convencional em sua resolução, e consegue usar uma hipocrisia e uma ironia disfarçadas em seu final que é extremamente bem vinda, mas faltou algo para fazer jus à força do argumento. Não há imagens impactantes, não há um momento a ser lembrado... não há nada que nos coloque no lugar de Douglass e nos torne íntimos dos conflitos com os quais ele bate de frente.

Provavelmente, aquele algo a mais que homens como Hawks e Ford tinham, e que ninguém saberia explicar de onde vinha.

Os Inocentes

Escrito por Fábio Rockenbach

(The Innocents, EUA, 1968)
Direção de Jack Clayton, com Deborah Kerr, Peter Wyngarde, Megs Jenkins




Toda a gramática cinematográfica do mais famoso plot das histórias de terror – a antiga casa assombrada – tem em “Os Inocentes” sua obra de referência definitiva. Mas Jack Clayton não fez apenas um filme assustador. Existe conteúdo na superfície de uma aparente superficialidade da história. A perda da inocência é um dos motes que circundam a história baseada no livro “A Volta do Parafuso” de Henry James, publicado em 1898. Há um leve ensejo de sexualidade reprimida na estranha relação de uma governanta com duas crianças em uma antiga mansão na Inglaterra, e acima de tudo há um visual magnífico, principal colaborador para que o grande elemento triunfante do filme de Clayton seja um exemplo: o terror não é explícito, ele é sugerido, é psicológico, e mesmo quando se torna visual, não é apelativo.

São tantas camadas compondo esse objeto que elas se alternam na condução da história com uma unidade impressionante. A governanta de Deborah Kerr é contratada para cuidar de duas adoráveis crianças, dois irmãos sem pais praticamente abandonadas pelo tio que mora em Londres. A mansão vitoriana onde ela terá, além das crianças, a companhia dos empregados da casa – em particular a empregada temerosa – é um personagem á parte. Ela esconde uma história de obsessão, sexo e morte que gravita em torno dos personagens, principalmente das crianças. A governanta começa a pensar que não estão sós na mansão. A suspeita de uma presença maligna se cristaliza aos seus olhos em diversos momentos, mas ninguém mais parece enxergá-las. E essa presença começa a se manifestar alterando o comportamento das crianças, que é assustadoramente dúbio, distante e insensível em alguns momentos. Se a existência desses espíritos não era afirmada categoricamente no livro de James, aqui eles aparecem, mas Clayton constrói essa teia de diferentes motivações de forma a plantar a dúvida no público: eles existem ou ela está enlouquecendo?

“Os Inocentes” é corajoso por trazer em uma de suas camadas uma relação estranha entre Kerr e o menino, que alterna a inocência de uma criança com um comportamento adulto e implacável. Não mais de uma vez, essa relação arranha a superfície da sugestão sexual, reprimida, ( contribuição de Truman Capote para o roteiro? ) confusa na mente da mulher que cada vez mais percebe que a história contada pela empregada ainda tem ecos no lugar.

O assustador no filme não vem do apelo visual – até porque kerr anuncia, com grandes olhos arregalados e expressão de espanto o surgimento das aparições nos cantos escuros e vidros da casa – mas de todo o clima de incerteza e inoperância da personagem no meio de um pesadelo psicológico. Vultos atravessam corredores à noite, surgem no meio de um lago, no topo de uma torre, sorriem demoniacamente por trás dos vidros. Esse terror psicológico é ampliado pelo brilhante contraste entre luz e sombra, pelo movimento das sombras nas paredes, no chão, no teto, pelos ângulos deconstrutivos, pela sobreposição de imagens alternando sonho e realidade, pelas brincadeiras com reflexos que também alternam o mundo real e o mundo espiritual. Pelo simples repetir de uma voz inocente cantando "Oh Willow Wally". No meio desse crescente terror psicológico, a história é ainda mais corajosa por não ceder à pressão do óbvio e incorrer em caminhos tristes em seu final. Não vai contra tudo aquilo que vinha construindo ao longo da história. É perturbador, e visualmente uma das experiências mais brilhantes da história do gênero – “Os Outros”, de Amenábar, bebeu muito na fonte do filme de Clayton.

Simplificando

Escrito por Fábio Rockenbach

Pequenas mudanças no blog, por dois motivos:
- o layout estava pesado, e em alguns computadores abria totalmente errado em uma das colunas
- quero algo mais simples, apenas pra críticas e divagações, ou não dou conta de manter tocando junto o Cinefilia. Então, esse layout está sendo criado. Mas os textos continuam, para os parcos mortais que ainda venham aqui para ler.
Como algumas pessoas pediram para manter o blog aqui, até para facilitar e não ter que editar links ou mudar rotinas, ele fica até segunda ordem.
Quanto ao layout, estou testando opções, então não se assustem com as mudanças até definir o que será dele - será a 4ª mudança de visual em 2 anos.

Abraço