Carrie, a Estranha

Escrito por Fábio Rockenbach



O brilhantismo com que Brian DePalma nos conduz na história de Carrie White é tão perverso quanto poderia ser uma adaptação de um romance de Stephen King, mas o terror em “Carrie, a Estranha” não vem do medo do desconhecido, de criaturas sobrenaturais ou mesmo do banho de sangue que ela entrega na palma da mão do espectador na climática seqüência do baile. O terror no filme de DePalma vem do fanatismo religioso e do preconceito. São esses dois elementos que causam repulsa e ódio, e alimentam, pouco a pouco, um sentimento tão dúbio no espectador que, quando Carrie arregala seus olhos de forma demoníaca, coberta de sangue, há um certo júbilo da platéia. Ela queria isso, tanto quanto Carrie. Ela queria ver a menina ridicularizada pelos colegas de escola e imersa em um inferno dentro de sua própria casa se vingar de todos – e sequer as pessoas que se importavam com ela conseguem se livrar de sua fúria demoníaca. E essa é outra face do terror psicológico de “Carrie”: a platéia quer ver sangue.

Adaptado do primeiro romance de sucesso de King, “Carrie” se apóia de forma magistral em duas atuações: a de Sissy Spacek, genial como a garota introspectiva, de cabelos divididos, postura amedrontada e gestos nervosos, e principalmente de Piper Laurie como sua mãe, fanática religiosa. Mais do que os colegas, é ela a responsável pelo banho de sangue que a menina, que possui dons telecinéticos, promove no Baile de Formatura. Mesmo que o fanatismo não cegue a menina, que sonha em interagir com seus colegas e sabe que o dom que possui não é uma manifestação do demônio, uma vida inteira criada dentro dos costumes castradores da mãe alimentam a explosão dos poderes ocultos da menina, que é ridicularizada no Baile.

Rever “Carrie” com atenção mostra um domínio invejável de DePalma sobre o tema ao qual se debruça. Ele alterna momentos tocantes e idílicos com abruptas intervenções no clima da cena, de forma tão brusca que levam o espectador de um lado a outro de sua percepção. O inocente banho é repentinamente interrompido pelo terror de Carrie com a primeira menstruação em um vestiário repleto de garotas prontas a ridicularizarem-na. A expectativa de um garoto, circundando as árvores em planos alternados de câmera, atrás de Carrie, é interrompido abruptamente pela manifestação rápida dos seus poderes. Na sua primeira aparição, a câmera sobrevoa a quadra do colégio para repousar, candidamente, no rosto de Carrie, na primeira manifestação de sua pouca popularidade. E toda e qualquer manifestação dos poderes ocultos da jovem surgem em momentos rápidos, que estouram sob um único acorde da trilha de Pino Donaggio – trilha, aliás, exemplar, que bebe na fonte de Bernard Herrmann mas consegue alternar os acordes assustadores com momentos tocantes.

E a construção do horror adolescente, em suas várias faces, atinge seu auge estilístico na seqüência do baile: A transformação da jovem, de Rainha do Baile para Rainha da Morte, quando Carrie, coberta de sangue, exibe seus olhos abertos e frios, sua expressão sem emoção, quando as portas se fecham, e a tela se divide em duas para mostrar a reação do público apavorado e as expressões de Carrie, apenas contemplando a destruição que promove. Já seria digno de constar em um dos grandes momentos da carreira de DePalma – que ensaia os momentos de slowmotion e antecipação que retomaria com tanto brilhantismo posteriormente na seqüência em que Amy Irving prevê o que está para acontecer mas tenta, sem sucesso, impedir. A força dos grandes olhos de Sissy Spacek mesclados com o vermelho que cobre seu rosto são assustadores e DePalma volta a trazer o espectador para o outro lado da moeda quando ela retorna para casa, apenas para, novamente, girar o botão novamente em uma seqüência que atesta toda a repulsa do público para com a figura da mãe. Essa capacidade de trabalhar tão bem o terror de forma não gratuita e constante coloca o filme de DePalma como um dos grandes momentos do gênero.

(Carrie, EUA, 1976 ) Direção de Brian DePalma, com Sissy Spacek, Piper Laurie, Amy Irving, William Kat, Nancy Allen, John Travolta. 98min

1 Comentários:

  1. Ygor Moretti disse...

    Muito bom o filme, esse sim, ja a refilmagem acho desnecessaria, nesse caso o original se basta e continua "moderno" para todos...