Contos da Lua Vaga

Escrito por Fábio Rockenbach

( Ugetsu Monogatari, JAP, 1953 )
Direção de Kenji Mizoguchi, com Masayuki Mori, Machiko Kyô, Kinuyo Tanaka, Eitarô Ozawa, Ikio Sawamura, Mitsuko Mito


"Celebre comigo esta noite. Compre essa mulher decadente com o dinheiro dos seus feitos."

O cinema de Kenji Mizoguchi tem uma força própria, diferente, por exemplo, do cinema de Ozu e Kurosawa, citando os dois mais famosos diretores do cinema japonês. Principalmente para quem está acostumado ao vigor narrativo de Kurosawa, assistir aos filmes de Mizoguchi significa abrir uma janela diferente para a percepção oriental de temas universais. Nas vezes em que o cinema de Kurosawa não buscava inspiração no cinema americano, que ele também inspirou, sua narrativa é uniforme, construindo um todo para buscar um sentido às vezes solitário – como o mercenário de Yojimbo ou o guia florestal de Dersu Uzala. Já Mizoguchi usa uma narrativa fragmentada, construída parte a parte, partindo de indivíduos para atingir a um coletivo. “Contos da Lua Vaga”, considerada sua obra-prima, não tem a força dos filmes de Kurosawa, nem o profundo mergulho na alma dos personagens de Yasujiro Ozu, mas tem uma aura própria: é arte em estado puro a serviço da reconstrução de uma história escrita em tábuas de madeira no Japão Feudal de 1776 ( de Ueda Akinari ), e versa sobre os temais mais caros ao diretor: o universo feminino e os sacrifícios que elas passam, normalmente, caladas.

Mizoguchi, um cineasta formado a partir do trauma de ver a fortuna da família jogada aos ares e a irmã vendida a uma casa de gueixas, conta a história de “Contos da Lua Vaga” (que na verdade teria um título como “Contos da Lua de Chuva”) a partir de dois homens, mas eles são apenas o veículo para versar sobre os sacrifícios e a sabedoria feminina. Dois oleiros, durante uma época de guerra no Japão Feudal, século 16, fogem com suas esposas e acabam separando-se delas. Um sonha em ser samurai, e larga tudo, inclusive a mulher que ama, para provar a ela ( e a si próprio ) que seu sonho não é apenas uma bobagem. O outro almeja tornar-se rico com seu trabalho para dar o melhor para a esposa, que no entanto quer apenas ter ele ao seu lado.

Rodado quase inteiramente em estúdio, a medida facilitou para Mizoguchi transformar “Contos da Lua Vaga” em uma obra, por vezes, contemplativa. Várias de suas cenas, congeladas, poderiam ser pinturas adornando qualquer parede. Buscando em muitas dessas construções o equilíbrio formal e a simetria, Mizoguchi também faz uso de simbolismos próprios do teatro japonês. Divide seus personagens claramente pelos seus figurinos – os dois sonhadores envergando trajes mais chamativos, e as mulheres, roupas mais sóbrias – e os identifica pela sua postura gestual, principalmente a princesa Wakasa, que leva Genjurô, o oleiro que sonha ser rico, para seu palácio e o seduz com seu mundo de riqueza e prazeres ( “Eu nunca imaginei que tal prazer existisse.”). Os gestos calculados e teatrais de Wakasa são também uma forma de diferir a essência da personagem dos demais.

E é no Palácio Wakasa – e com a história de Genjurô – que o filme de Mizoguchi tem seus momentos mais ricos. Além de trazer à tona a predileção do folclore japonês por temas fantásticos e o desconhecido, torna-se ainda mais comovente pelo seu desfecho na aldeia, sem procurar explicar essa história, apenas encenando-a e chegando à redenção que busca amenizar o sacrifício à qual as duas mulheres foram impostas. Apenas amenizar.

A comparação com Kurosawa não é despropositada. “Contos da Lua Vaga” é belíssimo, mas os cortes que fragmentam a narrativa e a falta de uma ligação que dê unidade a várias cenas prejudicam um pouco justamente a sensação de se estar assistindo a uma história interligada consigo própria. Mizoguchi assume-se como contador de um conto histórico – cada uma das histórias poderia render um filme próprio, repleto de nuances, que aqui são resumidas ao necessário. Isso não tira do filme o mérito do que maravilhou diretores ocidentais quando o descobriram, na década de 50: o cinema de Mizoguchi tem sua força própria no cuidado formal com que pinta cada frame como um quadro raro. Também prima por buscar soluções atípicas quando o cinema oriental, então, considerava os filmes uma retratação da realidade, e por buscar soluções para a história que surpreendem o público não só pelo insólito – e estranhamente poético – mas também por romper com a idéia do destino comumente dado à mulheres de bem, mãos dedicadas e dispostas a tudo pela família. Mistura vários gêneros construindo um misto de sentimentos que marca de forma diferente cada espectador. Definitivamente, um sortilégio quando os créditos finais aparecem, porque nos deixa absortos. A adoração em torno de seu nome não é em vão.

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