O Tesouro de Sierra Madre

Escrito por Fábio Rockenbach

( The Treasure of Sierra Madre, EUA - 1948 )
Direção de John Huston, com Humphrey Bogart, Walter Huston, Tim Holt, Bruce Bennett


"Eu sei o que o ouro pode fazer à alma dos homens..."

Como se pode falar em evolução do cinema quando falta tanta coragem nos tempos atuais para ser verdadeiramente autoral em um filme, e não apenas no quesito estético? Quando um filme é lançado fugindo um pouco do lugar comum, ou não se rendendo à clichês em seu final, ele logo é saudado como inovador, como surpreendente. Cineastas como John Huston faziam isso em praticamente todos os seus filmes. E não cola dizer que filmes como “O Tesouro de Sierra Madre” são pueris devido às reações de certa forma ingênuas de seus personagens em determinados momentos deste clássico de 1948. Encarado por alguns como uma aventura, por outros como um western, a história de Dobbs, Curtin e Howard é quase uma parábola, travestida em diversos gêneros. Um veículo para a genialidade de Huston e uma ode a um tempo onde o cinema era mais corajoso e as platéias pareciam ser menos afeitas à soluções fáceis.

Adaptado do romance homônimo de B. Traven, “O Tesouro de Sierra Madre” é um clássico que influenciou uma geração. Notadamente, cineastas como Scorsese, Lucas e Spielberg são fãs fervorosos da obra. Spielberg foi ainda mais longe: nos extras de “Os Caçadores da Arca Perdida”, admite que a criação de Indiana Jones carrega um pouco do Fred Dobbs de Humphrey Bogart. Quem conhece o primeiro filme do arqueólogo de trás para frente vai reconhecer ainda duas “homenagens” do cineasta ao filme de Huston: os sons dos animais nas florestas atravessadas pelo trio de “Tesouro...” e a risada de Dobbs em um momento crucial perto do final do filme foram recriadas idênticas na cena inicial de “Caçadores...”, reproduzindo os sons da floresta peruana e a risada de Belloq quando os índios hovitos partem atrás de Indy pela selva.


Não é difícil entender essa reverência. Mais do que uma aventura, um western ou qualquer gênero que queiram incluir, “O Tesouro de Sierra Madre” é fruto de uma época onde não era preciso apelar ao óbvio para imergir o público no coração da trama. Bogart é Fred Dobbs, americano miserável que vive em uma cidade mexicana à custa de esmolas, sem sorte, trabalho ou talento. Junto com outro desempregado à procura de uma chance, une-se a um velho, Howard, que passou a vida buscando ouro, para tentar a sorte em um garimpo perdido no deserto mexicano.

O roteiro do próprio Huston, fiel ao livro de Traven, pode apresentar os problemas citados acima de denotar uma certa urgência em determinados momentos, com reações inexplicadas e mudanças de temperamento súbitas de seus personagens, mas é um primor por não subestimar a inteligência do público – repare como, para mostrar o cansaço de Dobbs e Curtin, ele coloca o velho Howard tocando gaita ao lado dos dois, que sequer acordam. E a primeira aparição de Howard resume, em poucas palavras, não apenas o tema do filme como também a interpretação de Walter Huston, pai do diretor e merecido vencedor do Oscar de ator coadjuvante em 1949: o velho Howard explica como ganhou mais dinheiro do que poderia contar e, apesar disso, abriga-se num albergue para pobres. Usa o vício pelo jogo para explicar como o ouro pode matar um homem pela cobiça de sempre querer mais, e resume o sentimento em uma frase: “Tudo vai bem enquanto se procura pelo ouro. O problema para os homens é quando ele é encontrado.”


A coragem citada no começo do texto é a de não fazer concessões nem para o público nem para os personagens. “O Tesouro de Sierra Madre” é um conto sobre ambição, cobiça e loucura, personificados magnificamente por Humphrey Bogart, o retrato de um homem miserável por fora e por dentro. À medida que sua alma se envenena, seu aspecto físico externa esse sentimento, até tornar-se uma mera sugestão de um homem que, teoricamente, é extremamente rico e realizado na vida segundo seus planos. Na primeira parte desse ato de cobiça, Huston faz questão de mostrar que a moral de um homem pode suplantar essa ganância – Dobbs e Curtin surram um homem que lhes deve dinheiro em uma cena de luta extremamente realista até para os padrões atuais, mas pegam dele apenas o que ele lhes deve e devolvem o resto. É um comportamento que será testado ao longo de uma árdua jornada pelo interior do território mexicano dominado por bandidos, solidão e areia. Para demonstrar os efeitos dessa jornada, o diretor escancara closes de seus personagens e abusa dos contrastes da fotografia em preto e branco e dos acordes de uma oportuna trilha de Max Steiner, que varia conforme varia, também, o humor e as ambições dos seus personagens, com exceção de Howard. A expressão de indiferença do velho no aperto de mãos de Dobbs e Curtin mostra que será ele o elo de equilíbrio de uma jornada que, ele mesmo avisa, está fadada ao fracasso. Como o próprio Howard diz, há uma diferença entre os homens e suas prioridades. “Os bandidos o matariam pelos seus sapatos, não pelo seu ouro” diz ele, em certo momento, a um incrédulo Dobbs. No mundo árido deste clássico, a cobiça e a ganância são sentimentos destruidores mas tão frágeis quanto areia, que pode ser, literalmente, levada pelo vento.

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