O Caçador de Pipas

Escrito por Fábio Rockenbach

(The Kite Runner - EUA - 2007 )
Direção de Marc Foster, com Khalid Abdalla, Atossa Leoni, Homayoun Ershadi, Zekeria Ebrahimi, Ahmad Khan Mahmidzada


Confesso que achava essa onda de livros sobre o Afeganistão oportunista. Desde que o país deixou de ser uma mancha perdida no mapa para se tornar o país que os EUA invadiram atrás de Bin Laden, muita coisa se escancarou sobre a realidade daquele país. Talvez até de forma hipócrita, já que existem dezenas de afeganistões espalhados pelo Oriente e, principalmente, pela África. A leva de livros sobre a realidade dura de quem vive naquele país, seus costumes e sua religião me trazia essa noção de oportunismo, desde os livros que exploravam as imagens, caso de “Mulheres de Cabul”, aos best-sellers, como “O Livreiro de Cabul” e “O Caçador de Pipas”. Fui assistir a “O Caçador de Pipas” com essa idéia, um certo preconceito que não conseguia remover, mas interessado ao saber que por trás das telas havia o dedo do diretor Marc Forster e do produtor Sam Mendes. Aprendi, mais uma vez, a lição de não formar conceitos antes de conhecê-los.

Não que o livro não seja oportunista, provavelmente não faria o sucesso que fez se o Afeganistão continuasse uma mancha perdida no mapa que ninguém conhecesse mais do que ser o país invadido pelos soviéticos na década de 80. Mas é um filme sincero que não busca o apelo do público mainstream hollywoodiano - talvez por isso, tenha tido uma bilheteria baixa nos primeiros dias nos Estados Unidos, o que às vezes pode ser um bom sinal para quem quer fugir o lugar comum. A história de Kahled Hosseini é de uma simplicidade tocante, e se preocupa menos em narrar as desventuras daquele povo e mais em nos trazer para dentro da história de Hassan e Amir, dois garotos que crescem juntos na Cabul dos anos 70/80, unidos pela idade, separados pela maneira de encarar as adversidades da vida e pelas posições sociais. Hassan é um Hazara, uma casta inferior, uma minoria que sofre a discriminação da maioria étnica do país. Seu pai é empregado de Baba, pai de Amir. Ainda que a amizade dos dois seja sincera, para os outros garotos é apenas uma questão de posição. “Será que você teria seu amigo se seu pai não estivesse pagando o pai dele para isso?” pergunta a certa altura um dos garotos que costumam incomodar o pequeno Hassan nas ruas de Cabul.

Mas é essa amizade incondicional que forma o elo de emoção que prende o espectador. “Por você, faria isso mil vezes.” diz Hassan a Amir enquanto corre atrás de uma das pipas cortadas pelo amigo. Ele é o caçador de pipas do título. Sua posição na brincadeira – que rende algumas das mais belas cenas do cinema nos últimos anos – é de submissão. Enquanto Amir empina e corta as pipas dos rivais, ele é quem corre para encontrá-las e pegá-las, com uma habilidade incomum. Em certo momento, essa devoção a Amir pode se confundir com submissão, mas se apresenta como ombridade, mais do que qualquer coisa – o episódio do relógio e a maneira como o jovem Hassan se comporta são um tapa na cara de Amir. Frente às dificuldades da vida, é Hassan quem se põe à frente do amigo para defendê-lo. È ele quem não tem medo de desafiar os garotos mais velhos. Essa posição visivelmente deixa o pai de Amir contrariado, perguntando-se quando o filho finalmente começará a agir como um homem, e não como um covarde. Hassan passa a ser a encarnação das frustrações do pai para Amir, que em vez de encarar de frente a realidade, prefere fazer com que ela desapareça. Não é o fato de Hassan ser um Hazara, e ele um pashtun, ou de Amir ser sunita e Hassan um xiita que separa os dois. È o fato de Amir não conseguir olhar nos olhos de Hassan, um garoto que, como diz o livro, age e fala o que pensa sem medo da verdade. É a saída mais covarde, que toma forma após um episódio trágico na amizade entre os dois. Essa decisão de Amir acaba pesando em seu futuro, quando, anos mais tarde, já adulto, ele terá que retornar a Cabul para acertar as contas com seu passado, de todas as formas imagináveis.

Forster, um admirável diretor revelado nos últimos tempos, transmite a mesma poesia e maestria que já havia exibido antes em “Em Busca da Terra do Nunca”. Não apela para movimentos de câmera ou uma trilha sonora grandiloqüente para prender e emocionar o espectador. Ancora-se na admirável interpretação do elenco, de maioria absolutamente amadora ( a produção retirou as crianças e atores de Cabul após as filmagens para protegê-las da intolerância do regime, o que deixa ainda mais cruel a história que eles interpretaram), ancora-se na fidelidade de fazer o filme em sua maioria no dialeto Dari, da região ( ao contrário de outras obras que preferem passar para o inglês a ação e perdem o fator cultural como desencadeador da emoção e da realidade ). O roteiro de David Benioff, também um escritor, admiravelmente faz as cruezas do regime passarem ao largo e se concentra na relação humana dos personagens e nas nuances que faz com que os conheçamos. Hassan mantém os pés no chão, prende-se à realidade. Amir cria mundos, conta histórias, voa com suas pipas. Será o futuro dos dois, tanto de forma literal como subjetiva – Hassan enfrenta os problemas de forma aberta, sem tentar fugir ou se esconder deles, como mostra a seqüência em que Amir conta uma história de um homem que mata a esposa para chorar, e Hassan pergunta porque ele simplesmente não descascou uma cebola. É baseado nesses dois personagens que algumas motivações básicas do cinema são retratadas na tela. Mesmo quando adultos, a ausência de Hassan não impede que sua presença seja sentida nas ações de Amir, já que é essa lembrança que impulsiona seus atos e lhe dá uma coragem que ele jamais teve. O jovem Ahmad Khan Mahmidzada, que interpreta o jovem Hassan, é o catalisador de toda a emoção, em suas expressões de felicidade e dor residem toda a lembrança. E é essa lembrança de uma devoção e uma amizade incomum que nos emociona, nunca de forma apelativa, mas sempre sincera...

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