No Calor da Noite

Escrito por Fábio Rockenbach

(In the Heat of the Night, EUA, 1967)
Direção de Norman Jewison, com Sidney Poitier, Rod Steiger, Lee Grant, Warren Oates, Beah Richards.


É mais promissor do que propriamente competente este vencedor do Oscar de melhor filme, que entretanto parece prever em diversos aspectos o discurso do filme policial dos anos 90, trinta anos antes. Mas é um filme morno em sua resolução, ainda que sua força esteja não propriamente na busca pela solução de um crime, e sim na relação entre os envolvidos e o pano de fundo em que ela se desenrola. Estamos nos anos 60, em uma cidade do extremamente racista sul dos Estados Unidos, onde um importante empresário é encontrado morto na rua. O primeiro suspeito encontrado na estação ferroviária, altas horas da madrugada, é o negro Virgil Tibbs, vindo do norte, bem apessoado, sempre um olhar de fúria contida misturada com escárnio. É a força de Sidney Poitier como Tibbs que conduz o filme de Norman Jewison, mas é o oscarizado Rodd Steiger, como o chefe de polícia Gillespie, que dá liga a seus elementos dispersos. Tibbs é um oficial de polícia, o engano logo é desfeito, e por uma série de circunstâncias é ele quem acaba investigando o homicídio em uma comunidade extremamente racista.

Mais do que tenso – o que até consegue ser em alguns poucos momentos -, “No Calor da Noite” é um drama policial extremamente leve que apenas arranha na superficialidade o tema espinhoso que usa nas bordas de sua narrativa. Poitier entrega uma interpretação de um homem que todos percebem ter que enfrentar todos os dias a dúvida sobre sua capacidade, pela sua cor, um sentimento ampliado quando se está preso em uma pequena cidade do sul norte-americano nos anos 60. Mas Jewison não se arrisca a discutir mais essa situação, apenas a coloca como desencadeadora dos conflitos do filme, que se desenrolam com naturalidade e surpreendente leveza. Alguns momentos mostram que ele poderia ter um material diferente se ousasse: o industrial suspeito de matar o concorrente chora ao ser esbofeteado por Poitier, mais por indignação por ter sido humilhado por um negro do que pela raiva ou pela surpresa. E na estufa do mesmo suspeito, Tibbs ouve que ele “gosta de epífidos, entre todas as orquídeas, porque são como os pretos: precisam ser cuidados, alimentados, cultivados.” Preso na delegacia com um suspeito, Tibbs ouve dele a pergunta de “porque está vestido assim, como um branco?” Prestes a ir embora, ouve do delegado que “deveria ter sido chicoteado mais vezes para aprender.” Mas toda a revelação por trás de “No Calor da Noite” se dá quando Steiger encara o vingativo Tibbs e se surpreende: “Meu deus, você é como nós, não é?” para, bem mais tarde, confessar que o negro parecia ser o primeiro ser humano real a pisar naquela cidade em muitos anos. Gillespie não quer Tibbs por perto, mas precisa dele. E Gillespie no fundo, e apesar de toda a carga de rancor racista que construiu ao longo da sua vida, a ponto de ficar enojado com um breve momento de piedade demonstrado pelo negro - simpatiza com Tibbs porque, como o visitante, ele também não é bem visto na cidade.

Direção convencional com alguns bons momentos de Jewison, “No Calor da Noite” inspirou alguns bons temas do gênero décadas depois. Não tocou na ferida como poderia acontecer se fosse filmado hoje, mas pisou em terreno pedregoso para a época em que foi feito. Encarou a barra com bom humor e sutileza. O apoio de Jewison, longe de ser o bom argumento com fraca resolução, foi a dupla central que conduz o filme. Baseado em livro de John Ball, o argumento e a montagem de Hal Ashby também venceram o Oscar. A trilha é de Quincy Jones e a música-tema, que irrompe repentinamente na tela, “In the Heat of the Night”, sai da voz poderosa de Ray Charles. Os dois, claro, negros, e ótimos no que faziam.

Matar ou Morrer

Escrito por Fábio Rockenbach

(High Noon, EUA, 1952)
Direção de Fred Zinneman, com Gary Cooper, Grace Kelly, Lloyd Bridges

Pintura de Renato Casaro

Will Kane é provavelmente o mais humano dos heróis do western. E a despeito de muito que se tem dito ao longo dos anos, e da opinião de Howard Hawks, é um dos mais completos modelos de coragem do cinema norte-americano. Poderia, próximo da aposentadoria, viver seus dias em calma, com a mulher com quem acaba de casar, mas abdica da felicidade pessoal para honrar um compromisso que legalmente nem era mais seu. Will Kane abdicou de suas escolhas pessoais e voltou para a cidade onde era xerife para enfrentar Frank Miller, o homem que ele mandou para a cadeia cinco anos atrás, que agora está voltando no trem do meio-dia disposto a matá-lo, junto de 3 comparsas. Will Kane não é um covarde por pedir ajuda. É corajoso por enfrentar a situação. E Zinneman não cometeu uma afronta a alguns princípios de "macho" do western. Simplesmente usou da história para dar um tapa na cara de colegas de profissão que abandonavam supostos amigos na perseguição macartista dos anos 50.

A lenta agonia de Will Kane é criada por pedaços, como se cada "não" que irrompe em sua cara fossem lentamente construindo uma escada às avessas. Ela sobe em direção a um clímax lembrado a todo o momento pela espera dos comparsas de Miller na estação, ao mesmo tempo que o joga para baixo quando o que conta é a maneira do próprio xerife encarar seu destino. Não à toa, ele passa o filme inteiro perambulando pela cidade, de porta em porta, de amigo ( ou suposto amigo ) em amigo. Ao fundo, a música de Tiomkim clama o "não me abandone". Inútil. E mesmo assim, cada vez mais se afogando no irreversível, Kane insiste em não partir.

É em torno dessa construção que está a força de "Matar ou Morrer", de construir Kane como um legítimo herói do velho oeste, mas mais humano do que qualquer outro, porque se permite a ter dúvidas, a agir como, enfim, um ser humano. É mais humano do que todos os xerifes que já surgiram no gênero, porque não se priva de admitir que tem medo, que está borrando nas calças com a proximidade do meio-dia. Essa sensação de desespero com o passar do tempo é construída de forma primorosa pelos closes nos relógios, que acompanham o filme quase em tempo real - e não acredito na lenda de que o filme foi "salvo" na sala de edição com a adição dessas cenas, porque no filme os personagens procuram o relógio em diversos momentos, como que lutando contra um inimigo invisível, o tempo, cada vez mais escasso e cruel. E quanto mais o tempo passa, mais se aproxima a hora de chegar o trem, e mais Kane vê antigos amigos o abandonarem. Vê crianças brincando e simulando como ele vai morrer. Vê os habitantes rindo de sua tragédia pessoal, olhando-o com desprezo, escárnio. E mais ele ouve conselhos de ir embora da cidade, de fugir. E é em torno dessa construção que Gary Cooper gravita como único elemento do elenco a não soar caricato, em um mar de interpretações rasas. Essa construção resiste a tudo isso, porque é extremamente bem construída.

O que Howard Hawks achou inadmissível foi um xerife pedir ajuda a civis para enfrentar e resolver um problema particular - tanto que respondeu rodando "Onde Começa o Inferno" quatro anos depois. Mas, enquanto John Wayne tem ajuda de um velho, um jovem e um bêbado no filme de Hawks, Kane não tem ajuda de ninguém. Até poderia, mas recusa a ajuda de um garoto e de um velho bêbado. Permanece perambulando solitário pela cidade que lhe deu as costas. Zinneman apóia-se no poder semiótico de certas imagens para estabelecer o sentimento de inevitabilidade. Não apenas o relógio, mas de forma explícita, o movimento em direção à cadeira do tribunal onde Frank Miller sentou-se no momento em que foi condenado e jurou matar Kane. Ele acontece no exato momento em que o apito do trem indica que o meio dia chegou. As batidas secas da trilha de Tomkim confundem-se com o ritmo do pêndulo do relógio, segundo a segundo. Todas as personagens estáticas, imóveis. Kane engole em seco, e encara uma cidade habitada por fantasmas atrás de cada porta. Um movimento de câmera acaba mostrando-o solitário no meio da rua, a expressão inevitável de medo, o suor escorrendo pela testa. Não há imagem mais forte para representar a solidão de um herói. A estrela no chão empoeirado é uma resposta a toda a covardia daquela cidade e daquele tempo na América.



Golpe de Mestre

Escrito por Fábio Rockenbach

( The Sting, EUA, 1973)
Direção de George Roy Hill, com Paul Newman, Robert Redford, Robert Shaw



Sátira que promove a enganação total com inegável charme, "Golpe de Mestre" é o ápice da ironia refletida em si própria: enganou tão bem que ganhou o Oscar de melhor filme, mas acabou enganado pelo próprio tom de farsa que cria e mantém em toda sua projeção. É mais um daqueles filmes de visão unilateral e completamente irreal do mundo - aquele, verdadeiro, que enxergamos todos os dias na televisão. Mas longe de ser um filme ruim. "Golpe de Mestre", aliás, funciona que é uma maravilha na primeira vez que é visto - constrói uma bela empatia com o público, tem atores que claramente estão se divertindo e um clima de farsa que remete às estórias de Arséne Lupin. Mas é um filme que foi vitimado pelo tempo, e perde muito de seu impacto quando é visto uma segunda vez. Pior é quando o encanto inicial acaba dando espaço à um pingo de razão. Em "Golpe de Mestre", a violência é estilizada, apenas sugerida, e os bandidos são simpáticos. Aliás, é um barato ser trapaceiro: vigaristas respeitam uns aos outros, mantém laços de amizade, lembram dos feitos com saudosismo e são, todos, boa gente, sem exceção. É a velha mania americana de transformar foras-da-lei em mitos romantizados, sejam eles reais - como vilões do velho oeste ou Bonnie & Clyde - ou idealizados, como aqui.

George Roy Hill repete aqui a parceria afinada com Paul Newman e Robert Redford, mas não é, nem nunca foi, um grande diretor. Os méritos de suas duas realizações famosas( a anterior é "Butch Cassidy" de 1969 ) estão em frente às telas, na química da dupla Newman - Redford. É através deles que ambos os filmes deslizam suavemente em sua narrativa, cativam o público e, por fim, ficam marcados, e não por qualquer habilidade maior de Hill. Aliás, é numa daquelas revisões que "Golpe de Mestre" acaba sucumbindo em alguns pontos, quando, em certos momentos, torna-se indeciso entre o tom farsesco e o cuidado mais verossímil com certos aspectos da trama, especialmente com o personagem de Redford - o de Newman é, claramente, um ser à parte, quase superior, em torno do qual a trama se desenrola sem que ele seja, propriamente o responsável, ainda que a estória tente nos provar o contrário. O tom de farsa é escrachado, mas essa definição em aspectos cruciais poderia dar mais liga à estória de dois trambiqueiros de marca maior que se unem para dar um golpe em um chefão da máfia que ameaçou de morte ( sem saber ) um deles. Tudo gira em torno de um golpe envolvendo corrida de cavalos, e é em alguns aspectos da verossimilhança em torno da montagem do plano que "Golpe de Mestre" acaba pecando.

Mas é um problema idiota se for comparado com toda a mis-én-scene já falsificada em que o filme se equilibra com louvor desde as primeiras cenas - e os desenhos que dividem a narrativa, apresentando os "capítulos" tornam ainda mais deliciosa a farsa, criando um clima de expectativa que funciona maravilhosamente bem na primeira vez que se assiste. Se a diegética da narrativa já supõe essa fuga da realidade, se a intenção é ser ingênuo, teatral e muito divertido, então ponto para o trio - e para a já popular música te Scott Joplin. A obra acusa seus defeitos, mas para fugir a eles, a receita talvez seja assistir - e se divertir - apenas uma vez. É a chance de ser enganado como o público foi nos anos 70: um filme absolutamente normal, apesar de charmoso e cativante, que desbancou "O Exorcista", "Loucuras de Verão" e "Gritos e Sussurros" na corrida do Oscar.

Coisa de vigaristas charmosos... mas ainda vigaristas.

Mamma Mia

Escrito por Fábio Rockenbach

( Mamma Mia, EUA, 2008)
Direção de Phyllida Lloyd, com Meryl Streep, Pierce Brosnan, Julie Walters, Christine Baranski, Colin Firth, Stellan Skarsgard, Amanda Seyfried


Muito pouco se vê de realmente autoral nessa transposição do musical de sucesso da Broadway, que no cinema já rendeu mais de U$ 450 milhões em todo o mundo, porque o que se vê na tela é, no fundo, uma brincadeira, uma mega homenagem, um agradável período de férias para os envolvidos. Lloyd, a diretora, nem precisou ter experiência com cinema, porque "Mamma Mia" não é bem... cinema. É um grande videoclipe com cantores de chuveiro se divertindo.
E "Mamma Mia" é um filme de um só público. Foi feito para esse público, é por ele que deve ser assistido. Por que então foi um sucesso tão grande? Talvez porque existam mais pessoas que gostam de ABBA espalhados pelo mundo do que a vã filosofia possa imaginar. Talvez porque, se "Mamma Mia" disfarça uma histérica homenagem ao ABBA em forma de filme - uma jukebox de luxo embalada em milhões de dólares - pelo menos o faz com um elenco que deixa claro, em cada frame, que está se divertindo pra caramba com tudo aquilo, assumem a farsa, descambam para a auto-gozação, deitam e rolam.
Claro que, se a simples menção de ABBA lhe traz arrepios, toda essa empatia e mesmo uma das mais soltas e agradáveis aparições de Meryl Streep nas telas não valerão de nada. "Mamma Mia" é um filme de um só público: aquele que gosta de musicais, e mais ainda, de ABBA. Para esses, vale cada centavo do ingresso também para ver o sexteto que toma conta da tela.
Julie Walters ( a professora de dança de Billy Elliot ) e Christine Baranski estão hilárias como as amigas da personagem de Meryl Streep, Donna, mãe solteira que se prepara para o casamento da filha Sophie. A filha, sem que ela saiba, convidou os três homens do passado da mãe que podem ser seu pai. E tudo se resume a isso: o choque do reencontro de Dona com o passado e a confusão da situação - Donna não sabe o que a filha sabe e nenhum dos três sabe que pode sar pai de Sophie. É o tipo de confusão que, na vida real, se resolveria em alguns minutos, mas como em uma boa novela, ninguém diz o que deve ser dito, ou esclarece nada.



Esqueça: é um musical, e a lógica vai para o espaço em várias seqüências. E quando menos se espera, algum personagem já está cantando alguma música do ABBA - algumas casam perfeitamente com a estória, outras são forçadas, mas o público não está nem aí. Lloyd fez questão que os próprios cantores encarassem o desafio: as mulheres, nesse quesito, fazem e acontecem, e "aquela" parcela do público para quem o filme foi feito vai gostar de ouvir "Dancing Queen", "The Winnter Takes it All", "Take a Chance on Me", "SuperTrouper", "I Have a Dream" e outras músicas da boca do elenco.
O melhor, mesmo, é entrar no clima de sarro total. Com exceção da última intervenção, Pierce Brosnan até que não se sai tão mal cantando (Skaarsgard não abre a boca e Firth o faz discretamente), mas do trio de atores, Colin Firth é quem mais lucra com a brincadeira, e quem mais se solta.
E Meryl... bom, Meryl é outro nível. Ele tanto pode ser uma megera do mundo da moda, a mãe dominadora de um senador candidato à presidência ou uma solteirona presa à adolescência cantando em uma ilha grega. Ela é sempre maravilhosa. "Mamma Mia" pertence tanto à Meryl que, nas poucas cenas em que ela não aparece, o filme provoca bocejos. É ela, conduzindo uma brincadeira que fica escrachada nos créditos finais - aguarde o segundo número dos créditos quando o trio masculino entra em cena de forma hilária - que faz valer cada minuto de "Mamma Mia", um filme que pode não ser, exatamente, um filme. Que pode ser uma espécie de grande videoclipe relembrando a discografia do ABBA, mas cujo clima lembra uma daquelas brincadeiras de fim de festa de faculdade onde o que vale é mesmo se divertir e zoar.


O Rio das Almas Perdidas

Escrito por Fábio Rockenbach

( The River of no Return, UA, 1954) Direção de Otto Preminger, com Robert Mitchum, Marilyn Monroe, Roy Callhoun




Uma diversão totalmente desprovida de maiores significados para Otto Preminger, mas longe de ser apenas mais um western. Preminger abusa das possibilidades que o Cinemascope lhe oferece. Raramente seu objeto é centralizado, pelo contrário: seus personagens não dividem a tela com a natureza, mas oferecem-na de bandeja, ficando sempre em um dos cantos da larga imagem que, nos cinemas, deveria ser um espetáculo e tanto. Transforma as belas paisagens do noroeste norte-americano em um elemento à parte, intocável, superior. Brinca com a profundidade de campo. Explora a tela larga – expande no aspecto visual o que a trama básica não consegue oferecer além das entrelinhas. E é nas entrelinhas, também, que Preminger oferece as melhores declarações que poderia dar com o material humano que tem em mãos.

Se Marilyn Monroe eternizou-se como símbolo sexual descarado em filmes como “O Pecado Mora ao Lado” ou “Os Homens Preferem as Loiras”, em “O Rio das Almas Perdidas” ela aparece, desprovida de ornamentos e poses propositalmente apelativas, naturalmente sensual. Quando é massageada nas costas por Robert Mitchum, a expressão poderia ser de dor. Poderia ser de alívio. Poderia até ser um orgasmo. Preminger deixa nas entrelinhas vários elementos desse jogo dúbio composto por frases, expressões, reações. Quando Mitchum massageia as pernas de Marilyn, a cena se funde com a fogueira acesa na caverna. O inconsciente acusa, mas o apelo é sutil – culpa dos reflexos do Código Hays nos anos 50, que Preminger, aliás, sempre encarou e enfrentou aberta ou sutilmente. Abusa, é verdade, do potencial daquilo que manipula – quando os índios, retratados da forma mais rasa possível, se jogam no rio com corredeiras atrás da balsa onde fogem Mitchum, seu filho e Marilyn, ninguém entende porque eles perseguem com tanto afinco o trio de fugitivos. Mas todos entendem porque o índio arranca a blusa de Marilyn quando tem a chance. Menos que isso seria desperdício – da mesma forma se Mitchum não tentasse rasgar sua roupa pouco antes também, a câmera de Preminger ignorando os rostos, concentrando-se apenas nos quadris. Uma loira dessas perdida no oeste deixaria qualquer um louco, convenhamos.




Aproveitamento máximo: Preminger usa e abusa da tela larga

Mas mesmo com a trama simples, beirando a superfície do rio onde se desenvolve – pai e filho junto à dançarina de cabaré descem as corredeiras de um rio enfrentando todo o tipo de perigos para chegar a uma cidade, onde esperam encontrar o homem que lhes colocou em perigo, durante a corrida do ouro no norte dos Estados Unidos - seu diretor entrega um produto com assinatura, e um western baseado nas relações de um casal de protagonistas, antecipando muitos dos modernos filmes de ação. Não está na ansiedade pelo duelo final, anunciado com muita antecedência – motivador do filme, aliás - o atrativo principal. É tão leve e agradável que se parece, por vezes, deslocado do ambiente em que ocorre, por mais paradoxal que seja, já que a câmera explora ao máximo esse ambiente e a relação das personagens com ele. Mas em certo ponto ninguém se preocupa muito com o derradeiro encontro. Todos já sabem o que deve acontecer – e é então que Preminger assina sua obra ousando nas soluções, desta vez sem a sutileza de seu jogo erótico sensual anterior, mas descaradamente. É como se dissesse “há alguém com inteligência dirigindo isso, ainda que achem que eu me vendi.” Preminger não se vendeu. Emprestou a alma ao diabo, aliou-se à tentação ( loira e absurdamente linda ) mas preparou o terreno para o céu: os experimentos aqui serviram como base mais tarde. E com Marilyn em cena, ninguém reclama muito.

Desafio à Corrupção

Escrito por Fábio Rockenbach

( The Hustler, EUA, 1961 )
Direção de Robert Rossen, com Paul Newman, Jackie Gleason, George C. Scott, Piper Laurie




O que diferencia um vencedor de um perdedor? A coragem de arriscar ou a hora de saber parar? Eddie “Fast” Felson é um perdedor nato: tem tudo para ser o maior dos vencedores, mas não tem personalidade para saber, simplesmente, porque está jogando. É um personagem que surgiu despretensioso, e permanece despretensioso, ainda que seja um dos melhores personagens já surgidos para um ator no cinema. Paul Newman encarou Eddie Felson muito jovem, e quando vestiu a pele do personagem, vestiu uma criação que à primeira vista poderia ser de Brando, Dean, ou qualquer ator do famoso método do Actor’s Studio. Mas nenhum dos citados teria o que Newman esbanja no filme de Robert Rossen: a fome com que devora cada gesto, cada palavra, cada movimento de um notável perdedor. Eddie Felson, jogador de sinuca obcecado em vencer o lendário “Minesotta Fats”, seria um prato cheio para qualquer ator. Nem todos poderiam dar tamanha personalidade à ele sem soarem artificiais. Dos salões de bilhar espalhados pela noite à cama de Sarah Parkland, ele jamais deixa, nem por um minuto, de ser o personagem repleto de conflitos, absolutamente digno de pena e ao mesmo tempo admirável em uma falsa autoconfiança que precisa ser controlada.

E o que faria de Eddie um vencedor? O dinheiro e a glória, como pensa o jogador Bert Gordon de um também admirável George C. Scott, ou Felson só será um vencedor quando entender, afinal, qual a razão de jogar?Decadência, perversão e falsidade impregnam “Desafio à Corrupção”. É um filme melancólico, mas que esconde por trás da aparente incredulidade e falta de perspectivas a mesma matéria-prima que Martin Scorsese usou para retomar o mesmo personagem 25 anos depois em “A Cor do Dinheiro”. Nada melhor do que assistir um filme logo após o outro para perceber como Scorsese não fez apenas uma continuação: fez praticamente uma refilmagem, com uma reversão de papéis e uma releitura que justificam o primeiro filme. Eddie, o talentoso perdedor, Bert, o sanguessuga, Sarah, a impotente alcoólatra que só pode observar a queda, sendo arrastada junto. “Eles usam máscaras, e sob elas eles são pervertidos, degenerados e aleijados!” diz ela a Eddie, após pedir a ele que nunca mais se humilhe. São as mesmas palavras que ela escreve no vidro do banheiro como recado ao amante. E ainda que em meio ao whisky, ao cigarro, aos salões de bilhar vagabundos e às bebedeiras, o filme de Rossen deixa sempre uma brecha para que seu protagonista aprenda as mesmas lições que ele tentará passar a um jovem que é praticamente sua imagem e semelhança, em outro filme, 25 anos depois.

Felson encontra as respostas para tudo o que buscava no chão de um quarto de hotel. Após isso, tudo se resume a uma frase. “Aposte em mim Bert, eu não posso perder.” Para quem teve que perder muito para saber o que é vitória, não há mais derrotas possíveis.