Rio Vermelho

Escrito por Fábio Rockenbach

( Red River, EUA, 1948 )
Direção de Howard Hawks, com John Wayne, Montgomery Clift, Walter Breenan, Joanne Dru, Coleen Gray, John Ireland



Existe um pedestal imaginário onde certos filmes estacionam e do qual simplesmente não é possível removê-los. Muitos clássicos até chegam a passar por ele, mas não resistem ao tempo. Outros permanecem imóveis, não importa que passem 40 ou 50 anos. “Rio Vermelho” está estacionado nesse pedestal há 60 anos, e não há jeito de fazê-lo descer. A obra-prima de Howard Hawks não é somente um exemplar magnífico de porque os críticos da Cahiers du Cinema valorizavam tanto o gênero - pregando que havia mais do que mocinhos, bandidos, índios e duelos por trás da cortina de poeira e fumaça que os simbolizava. O filme, talvez a obra definitiva de Hawks em uma carreira de muitas obras definitivas – e sei que isso parece ridículo de ler – consegue juntar em pouco mais de duas horas um turbilhão de homenagens, sentimentos e discussões que é raro se encontrar em qualquer filme, de qualquer época.

Apropriadamente, Pauline Kael, talvez o maior símbolo da crítica cinematográfica mundial, chamou “Rio Vermelho” de ópera a cavalo. Indeed. Mas por mais que a crítica se derrame – e eu concordo – pelo embate psicológico do duelo entre pai e filho adotivo, o gênio americano homenageia o próprio gênero que ele aprendeu a admirar vendo os filmes de John Ford ( e o próprio Hawks admitiria que aprendeu a fazer cinema observando aos filmes de Ford ) e toda a mis-en-scéne que incrivelmente foi sendo esquecida ao longo do tempo, apesar de servir de motivação. Se a história americana passa pela conquista do oeste, uma terra desbravada, selvagem e regida pela lei do mais forte, foi feita também pelos vaqueiros, pelas grandes criações de gado e pela brutalidade das relações entre esses homens. Hawks retrata tudo isso aqui, num verdadeiro cinema de macho, regido pela força. Das palavras, dos atos, da bala. De ataques de índios a comboios, passando por duelos e as impressionantes cenas de 10 mil cabeças de gado sendo conduzidas, que povoam 80% das cenas do filme, Hawks filmou tudo no braço. Em uma época sem computadores, mostrou como o cinema respira melhor quando é feito ao natural, mostrando relações naturais.

Essa história que espelha um pouco dos sentidos da colonização do oeste serve de base sólida para o embate entre Dunson ( John Wayne, compondo um personagem quase tão complexo quanto o Ethan Edwards de “Rastros de Ódio” ) e Matt ( Montgomery Clift, conferindo uma força particular ao filme em cada aparição ), duas personalidades magnéticas. Dois muros batendo um contra o outro. Uma história de conflitos que começa 14 anos antes, quando Dunson encontra o jovem Matt perdido após um ataque de índios destruir o comboio onde ele viajava – e que vitima também a mulher que Dunson pretendia trazer para junto de si tão logo levasse a cabo o plano de iniciar sua criação de gado e fundar seu rancho. Desde o primeiro encontro, essas personalidades se chocam e se atraem, de forma estranha e plausível. Enquanto aborda a história de homens como Dunson, que começaram do nada e fundaram o alicerce do país na base da força, Hawks conduz de forma hábil a relação conflituosa entre pai e filho quando, anos depois, eles decidem levar 10 mil cabeças de gado por mil milhas para o norte, onde o preço por cabeça não foi atingido pela desvalorização após a guerra da Secessão. Os rumos que tomarão após iniciar a jornada é que impõem o conflito insustentável entre Matt, conciliador e sempre calmo, e Dunson, uma personalidade doentia por quem a platéia sente admiração e repulsa. Se o tema já era forte, a simples frase “Eu vou atrás de você, e vou te matar.” - dita por Dunson quanto é abandonado com seu cavalo pelo filho e pelo grupo – transforma esse épico a cavalo em um espetáculo ainda mais absorvente.

Por mais que Hawks demonstra a inabilidade em lidar com o universo feminino e das relações das mulheres com os homens, aqui superficiais e sem solidez, a personagem de Joanne Dru é quase um divã para os dois personagens que cruzam o caminho. É através dela, e em uma cena reveladora com John Wayne que todo o conflito interior dos personagens é explicado ao público sem soar artificial, o que dá mais peso à tensão que se arma até o momento em que eles se encontram, em um embate memorável que entrou para a história do cinema.

Toda essa história é narrada, nas entrelinhas, pela trilha sonora de Dimitri Tiomkim, que faz uso de diversos temas clássicos da cultura do western americano, desde canções entoadas pelos vaqueiros na jornada, passando pelo clássico tema “Red River Valley” até o aproveitamente, de forma sutil e brilhante, de canções populares como “Oh Susannah” (que John Ford usou tão bem dois anos antes no clássico “Paixão dos Fortes” ). Tudo para aproximar o filme de Hawks, realmente, de uma homenagem ao espírito dos temas representados na tela. E se não bastasse, a melodia clássica de Red River foi usada em outro momento antológico na filmografia de Hawks e do próprio gênero, a cena musical de Dean Martin e Ricky Nelson em “Onde começa o Inferno” que o próprio Hawks filmaria pouco mais de dez anos depois.

Não bastassem todos esses elementos, que dançam em torno do roteiro brilhante de Borden Chase – baseado em uma história do próprio Chase publicada no Saturday Evening Post – ainda há a fotografia de Russel Harlan, que transforma “Rio Vermelho” num dos mais belos espetáculos visuais já filmados, motivo pelo qual grande parte dos críticos defende que este é o tipo de filme que deveria ser visto em uma tela grande ( as imagens que ilustram esse texto falam em prol dessa afirmação ). É o tipo de oportunidade que não deve acontecer tão fácil em tempos onde clássicos só conseguem refúgio na tela do televisor. Menos mal: que “Rio Vermelho” permaneça intocado no pedestal onde ele se encontra. Tem estado lá por 60 anos, e não há lugar melhor para que ele permaneça, acima da grande maioria dos filmes de qualquer gênero.

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