Pacto de Sangue

Escrito por Fábio Rockenbach

( Double Indemnity, EUA, 1944 )
Direção de Billy Wilder, com Fred MacMurray, Barbara Stanwyck, Edward G. Robinson, Porter Hall


Se nas primeiras cenas o vendedor de seguros Walter Neff grava na sala de seu chefe a confissão do assassinato que sua companhia estava investigando, e que é o tema desta obra-prima – provavelmente o pai de todos os “noir” – o que mais resta para a platéia assistir nessa intricada história roteirizada por Raymond Chandler e dirigida pelo genial Billy Wilder? Resta muita coisa. Desde a primeira cena, vendo o estado do protagonista, sabemos que algo deu (muito) errado. Sabemos que ele é o assassino. Saber por que um vendedor de seguros cometeu um assassinato e como isso aconteceu é o fio condutor de uma estória que resume boa parte de uma trama básica que vem se repetindo há milhares de anos: o homem que mata por sexo e dinheiro, enganado pela mulher que pensa apenas nos benefícios que o ato lhe trará.

Billy Wilder considerava Alfred Hitchcok seu grande “rival” do cinema americano, no bom sentido. Não havia feito, até então, um grande filme realmente inesquecível. Adaptar “Doublé Indemnity” de James M. Cain ( também autor de “O Destino Bate à Sua Porta” ) foi uma dádiva para o diretor, que, se não podia contar com Cain para ajudá-lo no roteiro, teve a parceria – na maior parte do tempo pouco harmoniosa – do brilhante Raymond Chandler (“Um homem que parecia um vendedor de seguros, um cara normal, menos um escritor de estórias policiais” como descreveria o próprio Wilder ). E foi Chandler quem auxiliou para que a estória de Cain, brilhante na literatura, fosse transcrita para o cinema da forma que Wilder imaginou, já que os diálogos do livro, brilhantes, eram longos e sofisticados demais para a tela.

Essas histórias, presentes no ótimo documentário que acompanha a edição em DVD que a Versátil lançou no Brasil, apenas retratam um pouco do processo para transformar “Pacto de Sangue” em uma obra-prima. Se Chandler parecia um vendedor de seguros, colocou muito dessa impressão dele próprio na figura do personagem principal, Neff. Se desde o início sabemos que ele é culpado, acabamos de forma cúmplice acompanhando atentos sua trajetória porque ele não parece, de modo algum, um assassino. É um tolo, um americano raso enganado pela malícia e sedução de Phyllis Dietrichson ( Bárbara Stanwyck, um demônio na tela, e a mais bem paga atriz na época em que o filme foi rodado ), a mulher que trama com Neff a morte do marido para que eles recebam a milionária apólice de seguros. Só Neff pode planejar o crime perfeito, por conhecer o modo de pensar de Barton Keyes ( Edward G. Robinson ), seu superior na empresa, uma raposa em farejar fraudes e assassinatos. Mas como o próprio Keyes diz, não existe o crime perfeito, e “quando duas pessoas cometem um crime juntas, é como se entrassem em um bonde do qual não pudessem sair sozinhas, e o destino do bonde é sempre o cemitério.”

A fotografia de John Seitz é esplêndida por conseguir, em ambientes de pouca ou nenhuma luz, contar uma história captando a essência de cada ambiente. O apartamento de Neff tem áreas claras e escuras, o escritório de Keyes é sempre bem iluminado e a sala de Phyllis, onde tudo começa e termina, é envolvo em escuridão – e a luz que passa pelas janelas foemam nas sombras a impressão de grades, aprisionando os personagens. É como se quem habitasse aquele ambiente estivesse permanentemente, e antecipadamente, carregando o veredito de culpado. E a narração em off de Neff é a oportunidade de ouro para Chandler jogar frases fenomenais: troca de diálogos de duplo sentido, sexual ou literal, em uma época onde o código Hays minava intenções mais diretas voltadas ao público. “Temos um limite de velocidade nesse estado sr. Neff, e ele é de 72 Km/h.” “E a que velocidade eu estava indo?” “A pelo menos 90km/h”. É com esse diálogo que se traduz a maneira como Neff investe sobre Phyllis no seu primeiro encontro. Na primeira vez que se vêem, ele fala sobre os problemas de seguro do carro do marido de Phyllis, a futura vítima, avisando dos problemas que aconteceriam se acontecesse algo e os carros não estivessem “cobertos”. Na sua frente, Phyllis estava coberta apenas com uma toalha.

A narração em off também se tornaria uma marca registrada do “Noir”. Seria usada muito tempo depois, inclusive em paródias e homenagens, para fazer referência ao gênero. E ao optar por colocar a platéia como cúmplice e observadora impotente do drama de Neff, que vê sua situação piorar a cada dia que passa, torna essa história de crime e castigo ainda mais absorvente – um recurso semelhante ao usado por Hitchcok incontáveis vezes, para tornar a audiência cúmplice do protagonista, ainda mais quando ele se configura como um pobre coitado que voou alto demais na ambição.

Durante toda a projeção, quem acende o cigarro a Keyes é Neff, simbolizando a confiança e a auto-estima – e McMurray, um ator de segunda linha, cabe perfeitamente no papel do homem tolo e ingênuo com seu sorriso desbocado – até que, em uma única cena, a situação se inverta para mostrar também que Neff está “descendo do bonde”. Seguramente um dos melhores filmes de todos os tempos e do próprio Wilder, o que não é pouco para quem fez “Testemunha de Acusação”, “Quanto mais Quente Melhor”, “Inferno 17”, “Se meu Apartamento Falasse” e “Crepúsculo dos Deuses”.

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