Paixão dos Fortes

Escrito por Fábio Rockenbach

( My Darling Clementine, 1946)
Direção de John Ford, com Henry Fonda, Victor Mature, Jane Darwell, Walter Brennan


Em certos momentos de "Paixão dos Fortes", a impressão louca é que John Ford resolveu brincar com alguns postulados de fotografia típicos do filme noir. E a loucura de ver o contraste entre claro e escuro tão presentes em um filme de faroeste só é menor do que perceber que John Ford não está, propriamente, fazendo um tradicional "filme de bangue-bangue". Ford está prestando reverência. Às vezes formal demais, é verdade, mas uma bela reverência. A todos os que apontavam diferenças gritantes entre a popular história do xerife Wyatt Earp e o famoso duelo contra os irmãos Clanton no Curral OK - e o filme apresenta várias discrepâncias com a história retratada em outros filmes - Ford respondia que a versão apresentada por ele fora ouvida da boca do próprio Wyatt Earp. O fato de ter tido contato direto com o maior nome da colonização do oeste pode explicar também porque há tanta reverência ao personagem. Isso não diminui o apelo deste clássico, no entanto, como cinema dos bons.

Os puristas, aqueles que sempre criticaram os preconceitos exibidos por Ford em alguns dos seus filmes acharão desnecessária a menção ao índio bêbado ("Que tipo de cidade é essa que vende álcool aos índios?" ) e à amante de Holliday ( convenientemente chamada Chihuahua, dona de moral duvidosa ). Mas são elementos secundários na concepção geral do filme. Henry Fonda, possivelmente, seja o melhor Wyatt Earp apresentado no cinema. Não exibe a dureza sanguinária, quase obsessiva, de Kurt Russel em "Tombstone", tampouco faça concessões a querer ser "real" como foi Kevin Costner em "Wyatt Earp" ( e por isso mesmo acabasse parecendo dois ou três personagens diferentes ao longo do filme ). Fonda está contido, mas sabe alternar entre a dita reverência buscada por Ford e seu brilho próprio. Pena que muito pouco acabe sendo revelado do próprio personagem, em prol de mantê-lo em um nível mais elevado - Ford apenas o expõe como homem simples, tímido em certos momentos, como forma de humanizá-lo, mas imagina que todos os públicos saibam quem é Wyatt Earp e, por isso, não vê necessidade de apresentá-lo. Parece, em certos momentos, um filme feito para o público norte-americano.



"Paixão dos Fortes" não é um filme de ação como outros westerns mais movimentados do próprio Ford. Não demonstra o profundo envolvimento de Wyatt com sua família, catalisadora das emoções presentes em todas as versões da história, e também peca pelo pouco envolvimento expresso entre Doc Holliday e Earp - pouco sentimos de emoção quando algo acontece a um deles porque pouco nos identificamos, apesar do tempo em cena elevado dos dois personagens, e é uma pena que o diretor não tenha conseguido trazer James Stewart para compor a dupla de protagonistas ao lado de Fonda, como queria originalmente: Victor Mature está bem em cena, mas Stewart, com seu porte frágil, teria composto um Doc Holliday muito mais interessante e, com certeza, dramaticamente mais convincente. Mas é uma beleza de filme em seu ritmo calmo, que evolui sem pressa.

É curioso como, de certa forma, Ford acabe dedicando a narrativa não exatamente a Wyatt, ao duelo ou a Holliday, mas à Clementine, a mulher que cruza a vida dos protagonistas. Ela é o acontecimento mais importante para Earp - e a seqüência do novo corte de cabelo e do perfume mostra claramente isso - além, claro, do título do filme. Mas, estranhamente, esse personagem tão importante na concepção da própria visão dessa história é muito pouco desenvolvida ou aproveitada. Talvez porque ela seja mulher, gênero que obviamente Ford nunca soube retratar muito bem em seus filmes.

A reverência que John Ford presta ao personagem, também presta ao gênero que ele ajudou a criar. Conta uma história seminal na história popular dos Estados Unidos e a adota como se fosse sua, mudando com coragem conceitos aceitos pela cultura americana. Tinha peito para isso. John Ford está em um de seus momentos mais gloriosos visualmente, graças também ao brilhante trabalho de fotografia de Joseph MacDonald - pena que faltem alguns detalhes no roteiro de Sam Engel para que a narrativa fosse tão harmoniosa quanto o visual.

3 Comentários:

  1. Pedro Henrique Gomes disse...

    Não assisti este filme, mas se for um terço de Rastros de Ódio já está de bom tamanho!

  2. Fábio Rockenbach disse...

    então vai fundo.. hehe

  3. Jacques disse...

    Fábio, difícil não gostar de John Ford. Caso não tenha assistido ainda, recomendo a vc "Stagecoach". Deixei um Meme desafio a vc no meu blog. Abcs