À Beira do Abismo

Escrito por Fábio Rockenbach

(The Big Sleep, 1946)
Direção de Howard Hawks, com Humphrey Bogart, Laren Baccal, Elisha Cook Jr., John Ridgely



“À Beira do Abismo” é um digno representante do noir americano, sem dúvida, mas é um tanto superestimado, provavelmente pelo rol de estrelas que flutua em torno do filme e dentro dele. A princípio está tudo lá: o detetive particular, o assassinato, a mulher fatal de longas pernas sedutoras e olhar cúmplice, personagens com interesses escusos que deixam, acima de tudo, a dúvida no ar: em quem confiar? Mas a adaptação para o cinema da novela “O Sono Eterno” de Raymond Chandler não se compara, por exemplo, ao trabalho de Wilder em “Pacto de Sangue”, adaptando James M. Cain, em termos de força. Lauren Baccal, ninguém poderá dizer o contrário, não pode ser menosprezada, e é mais bela do que Barbara Stanwyck, mas é muito menos atriz. Mesmo sua personagem não tem a força da femme fatale representada por Stanwyck no filme de Wilder e a trama, que seria o grande pilar do filme, acaba sendo um dos motivos dele ser menos do que poderia. Reuniu em sua concepção os nomes de Chandler, autor do original, e William Faulkner, no roteiro, mas diz a lenda que, em certo momento, até mesmo Faulkner confessou-se perdido em frente à própria criatura que ele alimentara.

Bogart recria praticamente o mesmo Sam Spade que o celebrizou em “Relíquia Macabra”, com a diferença que seu Phillipp Marlowe, aqui, é menos duro e gelado, e talvez um pouco mais esperto e intuitivo. Ele é contratado por um general reformado para resolver um problema de dívida com jogo contraído por uma de suas duas filhas. A mais velha acaba entrando na história deixando claro que há interesses maiores em jogo – uma sórdida trama envolvendo jogo, corrupção e assassinato. Há tantas idas e vindas, personagens entrando e saindo, que em determinado momento entendemos o drama vivido por Faulkner ao adaptar a estória. As pontas vão sendo atadas aos poucos, mas quando essa compreensão se faz presente, toda a fragilidade dessa estória vem à tona. Parecem ser muitos personagens envolvidos por muito pouco, e, sobretudo, parece ser estória de mais em tempo de filme de menos: muitos dos conflitos se resolvem rápido demais, para que haja tempo de outros se desenvolverem. De certo modo, a estória de “À Beira do Abismo” foi formulada de forma tão intrincada que duas horas a fazem atropelar a si mesma, mas ao mesmo tempo não tem força suficiente para sobreviver a tempo maior do que isso. É complicado, eu sei, mas não acho outra forma de definir.

O que faz com que “À Beira do Abismo” sobreviva bem ao julgo do tempo é a imensa capacidade do trio Bogart-Baccal-Hawks de tornar uma estória pedante – porque imagina ser melhor do que realmente é – em um elemento secundário. Não são os assassinatos e idas e vindas que eternizaram o trabalho, mas a presença magnética da dupla de atores, as falas afiadas e cínicas, a mobilidade promovida por Hawks para a estória - enquanto muitos noir acabavam transcorrendo em espaços limitados, Hawks faz sua estória mover-se por cenários diversos, o que confere uma amplitude maior à ação - e a segurança do diretor na condução de uma estória que poderia, sob pulsos mais fracos, perder-se completamente. “À Beira do Abismo” ganha muito do seus status pelo nome dos envolvidos, mas pode-se dizer com justiça que, não fosse por eles, seria apenas um bom filme. Consegue ser melhor do que isso, talvez graças até ao peso do tempo, que lhe conferiu a aura de clássico que o filme carrega.

2 Comentários:

  1. Anônimo disse...

    Acho sensacional exatamente essa esquizofrenia do roteiro. À Beira do Abismo não foi feito pra ser acompanhado, mas pra confundir mesmo. Tudo contribui pra construção de uma atmosfera extraordinária de história policial + um milhão de coisas acontecendo ao mesmo tempo, e por isso mesmo, poucos filmes são mais envolventes, porque te obriga a se atirar de cabeça e a se perder no fluxo centena-de-informações-per-second.

  2. Fábio Rockenbach disse...

    Acho que talvez uma das questões seja essa: foi proposital? Se o próprio roteirista reclamou a certo momento que não conseguia mais amarrar a própria trama? De qualquer forma, algumas pontas se resolvem rápido demais, parecem que estão soltas ali apenas para tornar tudo mais complexo e, de repente, resolvem tirã-las para dar lugar a outras...
    Acho que sou meio reto, prefiro o preto no branco ( juro que não é proposital a expressão ) de "Pacto de Sangue", por exemplo.