Ele Pisou na Cauda do Tigre

Escrito por Fábio Rockenbach

10 ANOS SEM KUROSAWA

Eram sete, mas um deles caiu. Sobre o túmulo do samurai, uma bandeira contando a história é fincada com raiva. Nos primeiros pingos de chuva, o samurai olha o horizonte e sorri. A silhueta de dezenas de cavalos surge nas colinas, vindo como avalanche em direção ao pequeno vilarejo.
- Até que enfim. Eles vieram!
Camponeses e samurais olham para o horizonte e vislumbram o inimigo. Serão seis guerreiros contra dezenas. Espada contra espada, o campo de batalha será o barro e a chuva. A recompensa: apenas viver ou morrer.



Existia um narrador na sala escura dos cinematógrafos japoneses do começo do século. Não era um pianista apenas, musicando a arte do filme silencioso. Havia um narrador, criando vozes, expressões e sentimentos, como um ator. E a profissão era de alta conta, afinal, a arte engatinhava ainda, mas atraía admiração e curiosidade onde quer que passasse. Em Tóquio não era diferente.
Heigo Kurosawa era um desses narradores, que viu desde os primeiros filmes americanos e franceses às comédias da Keystone e clássicos mudos do cinema oriental que estão, em sua maioria, perdidos para sempre. Heigo não apenas viu como narrou essas obras para platéias estupefatas e um irmão que, sempre grudado nele, começava a se apaixonar pela sala escura. O jovem Akira, mais novo de oito irmãos, conheceu e aprendeu assim a amar o cinema. Enquanto o irmão Heigo passava seus tempos em salas que se assemelhavam aos nickelodeons americanos, Akira também dedicava tempo para uma segunda paixão, a pintura – sempre sob a tutela do pai, um entusiasmado admirador da arte ocidental. E esses três elementos – Heigo, as pinturas e o pai - seriam vitais para mudar a história do cinema mundial.
Quando “O Cantor de Jazz” estreou nos Estados Unidos, já na metade final da década de 20, o cinema começou a mudar de duas maneiras: o silêncio deixava as telas e um cineasta começava a se formar por força do destino. Os filmes não precisavam mais de narradores, os atores podiam falar por si próprios. Heigo Kurosawa estava desempregado, e o choque foi demais para ele. Decidiu que não valia mais a pena seguir em frente. Com apenas 27 anos, suicidou-se. O jovem Akira demorou anos para aceitar, mas deu o troco da única forma que podia: tornou-se um cineasta.

A trajetória de Akira Kurosawa se confunde com uma tragédia de erros que pareceu teimar em acompanhá-lo ao longo de 88 anos. Felizmente, o talento de Kurosawa foi maior do que essa conjunção de fatores que poderiam ter feito qualquer um desistir – ele quase desistiu com 30 cortes nos pulsos nos anos 70 – e o que restou, do lado de fora da ilha onde nasceu, foi a mais absurda reverência. Na pequena ilha é que uma certa mágoa parece ter permanecido.
A tragédia da morte precoce do irmão não foi o único empecilho que o jovem Akira enfrentou. Pintor informal desde cedo, foi recusado no exame de admissão de uma escola de arte de Tóquio um ano após a morte de Heigo. Não desistiu. Expôs algumas obras e, depois de 8 anos, começou a trabalhar no cinema como diretor assistente. O irônico de tudo é que o pintor recusado na Escola de Artes sempre fez da pintura o primeiro passo de qualquer uma de suas obras-primas. Os storyboards dos filmes de Kurosawa sempre foram não desenhados, mas pintados. Literalmente, seus filmes nasciam como obras de arte antes mesmo da primeira cena ser rodada.

Ele só pôde colocar à prova sua visão de que a relação entre a tela de pintura e a tela do cinema eram células do mesmo corpo em 1943, quando enfim dirigiu oficialmente seu primeiro filme, Sugata Sanshiro. A filmografia do diretor nos anos 40 não é das mais expressivas, mas já demonstrava em seus primeiros filmes um humanismo característico, aliado a uma certa tendência de ocidentalizar alguns temas. Era tímida, mas a influência do pai e a paixão pelo ocidente começavam a guiar e ao mesmo tempo a minar a carreira de Kurosawa.

UMA HISTÓRIA, VÁRIAS ESTÓRIAS
Foram necessários 10 filmes para Kurosawa experimentar diferentes idéias até começar a criar um estilo muito próprio. Sua primeira grande obra-prima veio em 1950. O grande prêmio no Festival de Veneza e o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro de “Rashomon” são apenas uma maneira leviana de apontar a importância da obra que, definitivamente, abriu as portas que separavam oriente e ocidente nas telas. Alguém dizia, do lado de lá, que havia muita qualidade no que era feito na pequena ilha. Bastava querer olhar.

Em “Rashomon” tudo gira em torno do assassinato do marido de uma mulher que foi estuprada na floresta. Quando Kurosawa decide contar como isso aconteceu, começa a surpreender ao mundo. A mesma história é contada sob 4 pontos de vista diferentes, dependendo de quem a narra. É o subjetivismo em torno de um mesmo fato dando seu primeiro enfoque no cinema – um recurso já usado inúmeras vezes desde então. Até o falecido marido retorna dos mortos para dar a sua versão do que aconteceu.

“Rashomon” abriu as portas do ocidente para o Japão e abriu portas para o próprio Kurosawa. O ocidente passou a conhecer as obras de mestres como Yasujiro Ozu e Kenji Mizoguchi – Mizoguchi, aliás, um criador de obras-primas desde os tempos do cinema mudo. Os três formam o tripé que sustenta a história não apenas do cinema japonês, mas de todo o cinema oriental. Extramamente humanista, Ozu sempre foi reflexivo, e Mizoguchi, ligado ao universo feminino, sempre foi contemplativo, criando filmes que se assemelhavam a verdadeiras pinturas vivas.


DO OESTE AO JAPÃO FEUDAL
Kurosawa, diferentemente, foi um pintor que colocava movimento em suas obras, herança direta do cinema americano, principalmente dos westerns. E bebendo nessa fonte, fez concessões ao estilo oriental e transpôs o oeste americano para o Japão feudal. Trocou revólveres por espadas, pistoleiros por samurais e ronins. E, ironia das ironias, inspirando-se no western americano, inspirou grandes mestres a refilmarem obras suas em Hollywood posteriormente.

A primeira das incursões de Kurosawa é a mais brilhante: depois de entregar “O Idiota” ( 51 ) e a obra-prima “Viver” (52 ), o diretor voltou ao tempo do Japão feudal e contou uma estória singela de coragem e honra, quase um conto mitológico, pela simplicidade e referência a mitos clássicos universais: uma aldeia de camponeses é assediada por bandidos que roubam sua colheita e atacam as mulheres. Desesperados, os agricultores vão em busca de samurais que possam protege-los, em troca apenas de comida. Conseguem a ajuda de um, que aos poucos traz para sua causa outros seis – a maioria, ronins sem mestre, sem destino, sem donos. Os sete chegam ao vilarejo e decidem enfrentar, sozinhos, as dezenas de bandidos do bando. As mais de 3 horas de duração de “Os Sete Samurais” configuram-se em um dos maiores espetáculos da história do cinema mundial – um misto de tradições nipônicas, culto à história milenar japonesa e uma ode a elementos básicos de todas as mitologias. Além de tudo, Kurosawa fez um épico belíssimo, centrado em honra e coragem. Tão belo e cultuado que 7 anos depois Hollywood refilmaria como “Sete Homens e um Destino”. A história, tão poderosa, se tornaria um clássico também na cultura do western americano.

Não foi apenas com “Os Sete Samurais” que Kurosawa inspirou o western. Os italianos também beberam de sua fonte. Feito em 1961, “Yojimbo – O Guarda Costas” contava a história de um ronin ( samurais sem um mestre para defender ) que, vagando sem rumo no Japão Feudal, acaba em um pequeno vilarejo disputado violentamente por duas famílias. Fazendo um jogo perigoso, ele oferece seus serviços às duas famílias para enganar a ambas, até o destino cobrar dele a ousadia e fazer com que ele decida-se por um lado: o resultado é um duelo, mais uma vez, de um homem contra vários. Em vez de pistolas, a rua principal da cidade é balançada por gritos de dor e o zunido de espadas. “Yojimbo” inspirou Sergio Leone a filmar “Por um punhado de Dólares”, clássico do western spaghetti que impulsionou a carreira de Clint Eastwood – encarnando o mesmo personagem feito pelo inesquecível Toshiro Mifune, ator preferido de Kurosawa. O pistoleiro sem nome dos westerns spaguetti, imortalizados por Eastwood, são crias de Mifune e Kurosawa. Atravessaram o mundo e séculos de história para repousar no velho oeste.

Esta época, nas décadas de 50 e 60, marca o ápice da produção de Kurosawa, não por acaso centrada nos épicos samurais, normalmente ambientados no Japão Feudal. Mas justamente por priorizar o aspecto selvagem das estórias de ronins e samurais, por transformar belas paisagens nipônicas em background para filmes de ação, o director nunca foi tão considerado no Japão como conseguiu ser fora dos Estados Unidos. Sofreu nos anos 70 por conta desta discriminação. Em 1971, um ano após filmar Dodesdaken, tentou o suicídio. Cortou o pulso mais de 30 vezes. Não era a hora ainda. Kurosawa precisava pisar na cauda do tigre, aquele mesmo que o encurralava contra a parede, mas também o inspirava. Precisava domar o tigre e fugir ao destino traçado na década de 20 pelo irmão – este abandonado pelo progresso, Kurosawa posto de lado pelo conservadorismo da crítica nipônica. Veio do Ocidente, que ele inspirou e deixou-se inspirar, a ajuda que necessitava, depois de criar em 1975 a obra-prima “Dersu Uzala”, filmado na Rússia – e o único filme da sua filmografia falado em outra lingua que não a japonesa. Nos anos 80, os “moleques” que cresceram vendo seus épicos samurais trouxeram Akira de volta. George Lucas, que foi inspirado por ele até mesmo na criação da saga Guerra nas Estrelas ( os robôs C3PO e R2D2 são uma referência direta à dupla de coadjuvantes de “A Fortaleza Escondida”, de Kurosawa ) e Francis Ford Coppola financiaram o retorno do mestre japonês. Ele voltou a dois terrenos que amava: os samurais e as adaptações literárias. Ganhou a palma de ouro em Cannes e o Oscar por Kagemusha – A Sombra de um Samurai. Com o belíssimo e lento Ran, adaptado de Rei Lear ( Shakespeare ) voltou a arrebatar a crítica. Foi sua despedida do Japão Feudal. Nos três filmes seguintes, Kurosawa aproveitaria para expiar alguns fantasmas. “Sonhos” é um delírio visual que celebra a tela quase como uma aquarela em movimento. “Rapsódia em Agosto” é uma ária de reconciliação com seu país, o país que o acolheu e a mancha atômica que ficou entre ambos. E Madadayo, sua despedida, é uma tocante e singela homenagem aos mestres, como ele.

Kurosawa guardou sua espada para sempre em 06 de setembro de 1998. Não sem antes pisar na cauda do tigre…

4 Comentários:

  1. Anônimo disse...

    Parabéns! Este blogue acaba de ser eleito como um dos novos integrantes da Liga dos Blogues Cinematográficos.

    Siga as instruções em:
    www.ligadosblogues.wordpress.com

  2. Pedro Henrique Gomes disse...

    Kurosawa não era somente um excelente cineasta. Era, antes disso, um gênio. "Os Sete Samurais" é o meu favorito dele!

    Abraço!!!

  3. Otavio Almeida disse...

    Belíssimo texto, rapaz! Parabéns! Kurosawa foi foda!

    Sobre a cena de GODFATHER III: Que coisa magnífica, não? O grito do silêncio é muito mais apavorante que qualquer som neste mundo! Viva Al Pacino!

    Abs!

  4. Anônimo disse...

    Ficou lindão o blogue Fábio, putz!

    E aparbéns por ter entrado na liga! A gente ia se inscrever, mas perdemos o prazo por dois dias, hahaha, fazer o que...