Grandes Suspenses - A Gramática da Tensão

Escrito por Fábio Rockenbach

Existem filmes que ajudaram a criar a gramática dos diversos gêneros em mais de 100 anos de cinema – e assim como fazer rir, deixar a platéia nervosa sem apelar para soluções fáceis é uma das mais difíceis lições que alguns mestres deixaram nessas 10 décadas, como mostram o pastor ensandecido de "O Mensageiro do Diabo", o perturbador canibal de "O Silêncio dos Inocentes" ou o tubarão do filme homônimo de Steven Spielberg. Quase como um gênero à parte, a tensão também pode vir acompanhada não do medo em si, mas da sensação desconfortável de inevitabilidade, como mostram algumas obras-primas do mestre do gênero, Alfred Hitchcok. Relembre 10 filmes que ajudaram a criar o termo "tensão" dentro da gramática do cinema...


O MENSAGEIRO DO DIABO
( The Night of the Hunter, Charles Laughton, 55)
Após fugirem de um pastor enlouquecido a bordo de um simplório barco pelo Rio Ohio, as duas crianças passam a noite em um celeiro. Nos primeiros raios da manhã, o garoto John acorda e vislumbra no horizonte o nascer do sol. Vislumbra também a silhueta do pastor e seu chapéu, melancolicamente montado em um cavalo. Angustiado, pergunta para si mesmo;"Ele nunca dorme?" A frase de John reflete o pensamento do público. O primeiro e único filme dirigido pelo ator Laughton é simplesmente uma das maiores obras primas da história do cinema. No personagem do cruel pastor interpretado por Robert Mitchum, a personificação da demência absoluta. Na mulher forte e corajosa interpretada por Lilian Gish, sentada de armas em punho na varanda durante a noite, o modelo de coragem e persistência na proteção às crianças. Na canção religiosa entoada por ambos os personagens, que se encaram aguardando o momento do confronto, a única ligação, diferenciada pelo caráter religioso de cada um. Pode ter envelhecido na teatralidade das interpretações, mas é um clássico absoluto: os momentos geniais incluem a visão do cadáver no fundo rio ( cena tétrica que consegue ser bela ) ou o grito de ódio de Mitchum quando as crianças escapam por suas mãos no rio


TUBARÃO ( Jaws, Steven Spielberg, 1975)

Um grito de horror corta o silêncio da noite e ninguém ouve. Apenas o público, mas nem mesmo ele vê o que está acontecendo. Steven Spielberg arrastou multidões aos cinemas ao transpor para as telas o best-seller de Peter Benchley e instaurou uma regra muito usada por cineastas dos anos 50 e 60 quando tinham poucos recursos: o medo do que não se vê. O público só vê o tubarão depois de mais de uma hora do filme, mas até então a simples cena de alguém entrando na água já criava expectativa. A meia hora final, em contrapartida ao suspense inicial, é de tal movimentação que nos deixa presos em frente à tela. Pauline Kael chamou o filme de "deliciosa comédia assustadora". Com momentos bem balançados de humor em meio ao show do diretor, é a trilha sonora de John Williams que dá o tom: seja de mistério, seja de aventura. Estava tudo no lugar para que o filme se tornasse um modelo...


JANELA INDISCRETA ( Rear Window, Alfred Hitchcok, 1954)

Hitchcok sempre fez questão de frisar que a chave para um bom suspense não está em surpreender a platéia, mas torná-la cúmplice - e nunca do protagonista, mas do antagonista. Com raras exceções, essa é a máxima de sua obra. Não era o susto, mas a sensação de inevitabilidade. Não surpreenda as pessoas da sala com uma bomba. Diga a elas que uma bomba vai explodir em breve - aí, sim, terá o suspense e a angústia. Associe a isso uma característica essencial a esse clássico: a inoperância, a incapacidade, e a sensação de não poder fazer nada – a cumplicidade forçada. É isso que o personagem de James Stewart, preso a uma cadeira de rodas após um acidente, sente nos momentos cruciais desta trama. Ele não pode se mexer muito - mas nós, do lado de cá. nos reviramos na poltrona, angustiados.


UM CORPO QUE CAI ( Vertigo, Alfred Hitchcok, 1958)

Nem os críticos que não receberam com tanto entusiasmo o filme ou mesmo Hitchcok talvez pudessem remotamente prever a importância que as gerações posteriores dariam a "Um Corpo que Cai". Numa época em que o mestre do suspense fazia obras primas em série e numa filmografia tão variada de filmes inesquecíveis, este filme é hoje considerado como o melhor de todos eles. Na narrativa estão presentes metáfores e alusões que superam tudo o que o mestre já tinha feito. A obsessão, a atração, o medo, o tema de "as aparências enganam" levado às últimas consequências. Hitchcok pode não ter tido Grace Kelly, mas fez de Kim Novak uma das loiras loiras frias mais ambíguas do cinema, e promoveu o apogeu de seu ator preferido, James Stewart, num conto que ainda hoje intriga e traz novas interpretações. Destaque também para a trilha sonora perfeita de Bernard Herrmann, parceiro habitual do mestre inglês, e a abertura criada por Saul Bass, que foi homenageada na abertura de "Cassino" por Martin Scorsese.


OS PÁSSAROS ( The Birds, Alfred Hitchcok, 1963)

Existe uma aura que cerca este que foi a última do grande ciclo de obras-primas que Hitchcok iniciou nos anos 50 - aquele tipo de sentimento beirando o mistério e o medo do inexplicado. Nada de sobrenatural. Hitchcok era pouco apegado a isso e investigava a fundo o lado real e sombrio do ser humano. Aqui, desviou-se um pouco e propôs um enigma: o que aconteceu em Bodega Bay? O público pode, até hoje, encontrar suas próprias respostas, já que o diretor expõe apenas os fatos - e nisso, ele era mestre. Truffaut disse que o cinema foi inventado para que semelhante filme fosse feito. Vendo a cena em que os pássaros se juntam no brinquedo atrás de Tippi Hedren, pouco a pouco, silenciosamente, damos razão ao cineasta francês.


M, O VAMPIRO DE DUSSELDORF ( M, Fritz Lang, 1931)
Uma mãe chama, agoniada, pela filha. Já anoiteceu e vários crianças estão desaparecendo misteriosamente. Uma criança surge na tela enquanto o clamor da mãe recebe como resposta apenas o vazio do corredor. Um balão voa sozinho, e revela na parede a sombra de um psicopata. Lang queria que seu filme tivesse o título "O Assassino Está Entre Nós". Percebendo uma alusão, o governo alemão vetou o título. M, de Murderer (assassino) bastou, então, para o cineasta. Ainda hoje, é uma prova do talento de seu realizador - tanto quanto as imagens que marcaram sua obra, o som tem papel fundamental no filme, e poucos tinham o domínio da técnica que ainda era motivo de experimentações no cinema mundial. Lang não só tinha como foi um dos primeiros a saber como usá-lo em proveito do conjunto da obra.


INTRIGA INTERNACIONAL ( North by Northwest, Alfred Hitchcok, 1955)

Existem duas maneiras de se analisar a filmografia de Alfred Hitchcok: habitualmente, seus filmes variavam sobre o cidadão comum envolvido em situações além de sua compreensão, ou tramas intrincadas com toques macabros - e um fino humor negro. Dentro desses dois tipos, haviam os filmes tipicamente intimistas, ou suspenses do indivíduo, e os thrillers que usavam o suspense como combustível para a aventura. Nesse último, "Intriga Internacional" é unanimemente seu maior filme - um road-movie aventuresco com um impecável Cary Grant tentando descobrir o que houve com sua vida pacata agora envolta em espiões internacionais, chantagem e perseguições. Hitchcok para ontem, hoje e sempre.


ENCURRALADO ( Duel, Steven Spielberg, 1971)

À beira da insanidade, o pacato motorista cria coragem e desafia seu opositor. Sai de seu carro e avança decidido rumo ao caminhão – monstro de diesel sem rosto - parado algumas dezenas de metros à frente. Quando ele se aproxima, ele acelera e sai, deixando-o com a fumaça nos olhos. A câmera sobe e mostra-o solitário, no meio do deserto, no meio da estrada, no meio de seu pesadelo. Em sua estréia, Spielberg entregou um filme perturbador, feito para a televisão, com qualidades suficientes para marcar o cinema. O vilão de seu filme não é o motorista do caminhão, cujo rosto nunca aparece. Ele toma as formas do próprio veículo - a falta de razão que perturba na perseguição incessante a um homem comum e cada vez mais próximo da loucura.


PSICOSE ( Psycho, Alfred Hitchcok, 1960)

A dualidade da personalidade humana e sua demência levados às últimas consequências. Este foi o maior êxito comercial de Hitchcok, e talvez seu mais famoso filme. Tem a mais famosa sequência de todos os seus filmes - cuja autoria ainda hoje é discutida e contestada. Marcou a filmografia de Anthony Perkins, que nunca mais se livrou do personagem Norman Bates - e parece ter adquirido um pouco da demência de tão irreal e ao mesmo tempo comum personagem. Tantos atributos não são em vão. Hitchcok continua um artista em grande forma - a cena inicial, com a tomada aérea chegando no quarto de Janeth Leigh, ou a sequência em que o carro é jogado no pântano - a infalibilidade do plano posta em dúvida por meros segundos, ainda assim de pura tensão - são apenas alguns exemplos de sua maestria. A trilha de Bernard Herrman é também um dos pontos altos de sua carreira, e foi homenageado na abertura de “Sinais”, de Shyamalan.


O SILÊNCIO DOS INOCENTES (The Silence of the Lambs, Johnathan Demme, 1991)
Um raro momento no cinema onde todos os astros parecem confluir para um determinado ponto. Nesse caso, eles confluíram para o diretor Johnathan Demme, para Jodie Foster e para Anthony Hopkins. Juntos, eles fizeram um apavorante conto moderno que trata dos pesadelos da alma humana mostrando que, ao contrário do que explora o imaginário popular, não é preciso nenhuma criatura anormal para nos provocar o medo. O maior inimigo, a maior besta, é exatamente o homem. Na pele de Anthony Hopkins, essa besta assume contornos assustadores apenas pelo seu olhar. Hannibal Lecter é um gênio, mas não prescinde de seu lado incomum de psiquiatria: devorar seus pacientes. Curiosamente, é ele o único elo que liga a jovem agente Clarice Starling ao psicopata Buffalo Bill. No meio de personagens de tamanha demência, o que se poderia esperar se não o lado assustador do ser humano?

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