O Estranho

Escrito por Fábio Rockenbach





É comum considerar “O Estranho” um filme menor de Welles. O uso desse termo já se tornou lugar comum, mas fico com Luiz Carlos Merten, quando afirma que muitos diretores dariam tudo para ter uma obra “menor” como essa em seus modestos currículos. O próprio Welles encarou “O Estranho” como uma direção de aluguel, para provar ao produtor Sam Spiegel que poderia, sim, dirigir um filme mais... digamos, comercial. Mas ainda que algumas atuações exageradas em suas reações e algumas brechas tênues no roteiro – indicado ao Oscar – possam apontar para problemas no filme, o que se eleva do menos conhecido filme dirigido por Welles é como ele deixa sua marca. Ângulos de câmera inusitados, enquadramentos perfeitos, uma mis-én-scene orquestrada à perfeição na recriação do “way of life” da pequena Harper, cidade universitária de Connecticut onde um criminoso de guerra nazista se esconde logo após a guerra, reconstrói a vida como um pacato professor e se casa com a filha de um juiz da suprema corte. E para onde, também, ruma um detetive disposto a descobrir o rastro do criminoso e capturá-lo.

Se a intenção de Welles era mostrar que podia ser comercial, matou a charada e ganhou a aposta, seja ela qual tenha sido, com Spiegel, porque é muito fácil e ligeiro acompanhar a trama de “O Estranho”, sendo capturado de uma cena a outra pela forma ágil com que o roteiro de Anthony Veiller conduz a trama sem perder tempo na construção dos personagens ou explicar mais sobre de que forma Kindler, o criminoso, se tornou Rankin, o professor, e apagou todos os seus rastros. Se essa construção das personagens é rasa, sobra uma encenação metódica de cada ato dessa história. Welles era um mestre em falar pelas imagens, pela composição de cada quadro, pela posição exata da cena e pela forma como ela se movia e interagia de forma quase simbiótica com o ambiente. Em grau menor, é o que ele faz aqui também – e a forma como ele retira de cena o rosto de Kindler – ele próprio – e move a atenção da platéia para o que acontece ao fundo, na porta de uma Igreja que é o epicentro de toda a ação, para depois recolocar Kindler na cena, já na meia hora final, denuncia sua presença. Nas mãos de outro diretor, talvez “O Estranho” fosse alijado de construções de cena como essa, que ocorrem em diversos momentos. A forma como elementos e personagens entram e desaparecem o raio de ação da câmera e se complementam com o resto da construção é maravilhoso. É uma pena que, se começa com pleno vigor e é sustentado por uma interpretação magistral de Edward G. Robinson – Welles, já comentei, exagera em algumas reações – o filme termine de forma tão abrupta após uma meia hora final, com o clímax na torre do relógio, sendo tão brilhante. Chamar “O Estranho” de filme menor só é admitido quando se tem, na filmografia, “coisas” como “Cidadão Kane”, “Soberba” e “A Marca da Maldade” mesmo. Do contrário, é sacrilégio...

( The Stranger, 1946, EUA ) Direção de Orson Welles, com Orson Welles, Loretta Young, Edward G. Robinson, Richard Long, Martha Wentworth

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