Winchester 73

Escrito por Fábio Rockenbach





A dobradinha Anthony Mann / James Stewart tem um capítulo ä parte na história do western. Juntos, diretor e ator fizeram cinco exemplares memoráveis do gênero, dos quais “Winchester 73” talvez seja a melhor. Stewart acrescentou uma nova persona à carreira, a do homem de passado obscuro, que luta contra seus fantasmas de um lado, e contra um inimigo de outro. Esse embate constante transforma seus personagens em alguns dos mais densos e humanos que o gênero concebeu. Densos por nunca se revelarem totalmente, e humanos por serem açoitados por histórias mal contadas, escondidas por trás de falas escolhidas a dedo e gestos nem sempre bem explicados. Em “Winchester 73”, esse passado é uma rusga de família que coloca irmão contra irmão, em uma perseguição implacável pontuada pela trajetória de mão em mão de um rifle Winchester 1873, “Um entre mil”, cobiçado por todos, que parece ter vida própria. É um personagem à parte do filme de Mann.

O diretor também aproveita para inserir velhos postulados do gênero: o ataque de índios, a cavalaria, a presença do mítico Wyatt Earp como um dos personagens. É como se, não sabendo se voltaria ao gênero, ele aproveitasse para colocar a mão em todos esses elementos de uma só vez. Todos passam rasantes ao largo da caçada de Lin McAdam a Dutch Henry, o irmão renegado com quem tem contas familiares a acertar, tão fortes que transformam uma caçada até a morte em uma obsessão. A forma equilibrada como Mann insere tantos elementos, e faz o público acompanhar tanto a trajetória dos irmãos como de um inanimado rifle, é um feito. Uma p... lição de como em pouco tempo – não mais do que 90 minutos – todos esses ingredientes possam ser misturados sem tirar a unidade de uma história que é forte em si própria. Não há humor, não há quedas na narrativa, momentos de descanso ou inserções inúteis. A própria menção ao massacre de Custer pelos Sioux é um comentário breve de como velhos clichês poderiam estar mudando, apesar dele não se aprofundar nessa idéia. Tampouco as menções à guerra da secessão, episódios paralelos à maioria dos filmes do gênero que eram pouco mencionados em outras produções – posteriormente, John Ford faria menção ao fazer de seu Ethan Edwards em ~Rastros de Ódio”um veterano derrotado do mesmo conflito. O brilhantismo de “Winchester 73” está em conseguir equilibrar todos esses elementos com uma direção segura e movimentos sempre calculados de câmera que revelam todo o domínio do espaço cênico por parte de Mann. A dobradinha ainda renderia outros momentos memoráveis, mas Mann pôde entregar seu filme com a certeza de ter visitado os elementos clássicos do gênero com uma grande dose de maturidade e muita profundidade. O que veio depois só comprovaria a força do que foi apresentado aqui.


( Winchester 73 - EUA - 1950 ) Direção de Anthony Mann, com James Stewart, Shelley Winters, Dan Duryea

O Estranho

Escrito por Fábio Rockenbach





É comum considerar “O Estranho” um filme menor de Welles. O uso desse termo já se tornou lugar comum, mas fico com Luiz Carlos Merten, quando afirma que muitos diretores dariam tudo para ter uma obra “menor” como essa em seus modestos currículos. O próprio Welles encarou “O Estranho” como uma direção de aluguel, para provar ao produtor Sam Spiegel que poderia, sim, dirigir um filme mais... digamos, comercial. Mas ainda que algumas atuações exageradas em suas reações e algumas brechas tênues no roteiro – indicado ao Oscar – possam apontar para problemas no filme, o que se eleva do menos conhecido filme dirigido por Welles é como ele deixa sua marca. Ângulos de câmera inusitados, enquadramentos perfeitos, uma mis-én-scene orquestrada à perfeição na recriação do “way of life” da pequena Harper, cidade universitária de Connecticut onde um criminoso de guerra nazista se esconde logo após a guerra, reconstrói a vida como um pacato professor e se casa com a filha de um juiz da suprema corte. E para onde, também, ruma um detetive disposto a descobrir o rastro do criminoso e capturá-lo.

Se a intenção de Welles era mostrar que podia ser comercial, matou a charada e ganhou a aposta, seja ela qual tenha sido, com Spiegel, porque é muito fácil e ligeiro acompanhar a trama de “O Estranho”, sendo capturado de uma cena a outra pela forma ágil com que o roteiro de Anthony Veiller conduz a trama sem perder tempo na construção dos personagens ou explicar mais sobre de que forma Kindler, o criminoso, se tornou Rankin, o professor, e apagou todos os seus rastros. Se essa construção das personagens é rasa, sobra uma encenação metódica de cada ato dessa história. Welles era um mestre em falar pelas imagens, pela composição de cada quadro, pela posição exata da cena e pela forma como ela se movia e interagia de forma quase simbiótica com o ambiente. Em grau menor, é o que ele faz aqui também – e a forma como ele retira de cena o rosto de Kindler – ele próprio – e move a atenção da platéia para o que acontece ao fundo, na porta de uma Igreja que é o epicentro de toda a ação, para depois recolocar Kindler na cena, já na meia hora final, denuncia sua presença. Nas mãos de outro diretor, talvez “O Estranho” fosse alijado de construções de cena como essa, que ocorrem em diversos momentos. A forma como elementos e personagens entram e desaparecem o raio de ação da câmera e se complementam com o resto da construção é maravilhoso. É uma pena que, se começa com pleno vigor e é sustentado por uma interpretação magistral de Edward G. Robinson – Welles, já comentei, exagera em algumas reações – o filme termine de forma tão abrupta após uma meia hora final, com o clímax na torre do relógio, sendo tão brilhante. Chamar “O Estranho” de filme menor só é admitido quando se tem, na filmografia, “coisas” como “Cidadão Kane”, “Soberba” e “A Marca da Maldade” mesmo. Do contrário, é sacrilégio...

( The Stranger, 1946, EUA ) Direção de Orson Welles, com Orson Welles, Loretta Young, Edward G. Robinson, Richard Long, Martha Wentworth

Anatomia de um Crime

Escrito por Fábio Rockenbach




Sob o som do genial Duke Ellington, debaixo dos braços das interpretações de James Stewart , Lee Remick e George C. Scott, sob o olhar de Otto Preminger, pouco importa que o que tanto tenha provocado polêmica em “Anatomia de um Crime” – a menção e discussão de temas como estupro, roupas íntimos, métodos contraceptivos, sexo e a própria sexualidade – hoje soe envelhecido demais para causar impacto, porque a força do clássico de Otto Preminger – que muitos consideram o melhor filme de tribunal de todos os tempos – permanece a mesma naquilo que importa: sua narrativa, e a forma como atrai e prende o público em sua teia. Sobretudo, a maneira como respeita a inteligência do público.

Escrita pelo juiz John D. Voelker, “Anatomia de um Crime” traz James Stewart como um ex-promotor com pouco dinheiro e pouco se lixando para a vida, mais interessado em pescar e descansar, que aceita voltar aos tribunais para defender um tenente do exército acusado de matar o dono de um bar, que teria estuprado sua mulher. Porém, nem o tenente é flor que se cheire – sempre frio, calculista e notadamente ciumento – nem a mulher é a santidade que deveria ser para que o caso tivesse mais chances de sucesso. Só isso já mostraria o quanto “Anatomia de um Crime” investe na falta de nitidez de personagens e situações para confundir o público, mas é ainda melhor.

O filme é sempre dúbio. O final é dúbio. As certezas na mente do público são dúbias, e talvez seja esse o grande mérito desse clássico de Preminger. O público sabe tanto quanto Paul Biegler. E esse dilema básico, inocente ou culpado, é tão habilmente conduzido por Preminger que não é raro que a audiência se sinta dividida quanto a suas opiniões: em dado momento, a atuação do assistente da promotoria geral representado por George C. Scott é tão agressiva e convincente, e Biegler se torna tão inconveniente com nossa busca pela verdade, que percebemos que na verdade não existem lados para os quais torcer em “Anatomia de um Crime”. Existe, isso sim, o lado cujas ações acompanhamos de forma privilegiada, bem de perto.

O clássico de Premminger surgiu de forma oportuna para ajudar a desmontar a imbecil censura imposta nas produções americanas já desde duas décadas antes: vocabulário direto, franco, sem papas na língua – a definição que seria usada no tribunal para o termo “calcinha” origina uma interrupção no julgamento e uma troca de idéias entre o juiz e os dois advogados, para que se tenha idéia dos tempos hipócritas que se viviam nos Estados Unidos dos anos 50, sob a regulação do conservador Código Hays, que tornou Hollywood um lugar inocente – até demais – nos anos 30 a 50. (Em todo esse contexto, é memorável também a participação do juiz Joseph N. Welch, interpretando o próprio juiz que preside o caso: foi Welch quem colocou em seu devido lugar o Senador Joseph MaCarthy, que conduziu a perseguição comunista na América na década de 50, e entrou para a história ao encarar o senador e lhe perguntar, sem papas na língua: O Senhor não tem vergonha?)

Preminger, como de costume em seus bons tempos, emite seus julgamentos de sentido em alguns momentos, de forma tímida, mas reveladora. A lata de lixo que aparece nos momentos finais, e tudo o que é dito em frente a ela dá uma indicação do que ele apontaria como verdade absoluta da história, a sua noção de caráter e moralidade. Dúbia, como o resto do filme, ou pelo menos livre para entendimentos: o público formula o seu.

(Anatomy of a murder, EUA, 1959 ) Direção de Otto Preminger, com om James Stewart , Lee Remick , Ben Gazarra , George C. Scott 160 min

Carrie, a Estranha

Escrito por Fábio Rockenbach



O brilhantismo com que Brian DePalma nos conduz na história de Carrie White é tão perverso quanto poderia ser uma adaptação de um romance de Stephen King, mas o terror em “Carrie, a Estranha” não vem do medo do desconhecido, de criaturas sobrenaturais ou mesmo do banho de sangue que ela entrega na palma da mão do espectador na climática seqüência do baile. O terror no filme de DePalma vem do fanatismo religioso e do preconceito. São esses dois elementos que causam repulsa e ódio, e alimentam, pouco a pouco, um sentimento tão dúbio no espectador que, quando Carrie arregala seus olhos de forma demoníaca, coberta de sangue, há um certo júbilo da platéia. Ela queria isso, tanto quanto Carrie. Ela queria ver a menina ridicularizada pelos colegas de escola e imersa em um inferno dentro de sua própria casa se vingar de todos – e sequer as pessoas que se importavam com ela conseguem se livrar de sua fúria demoníaca. E essa é outra face do terror psicológico de “Carrie”: a platéia quer ver sangue.

Adaptado do primeiro romance de sucesso de King, “Carrie” se apóia de forma magistral em duas atuações: a de Sissy Spacek, genial como a garota introspectiva, de cabelos divididos, postura amedrontada e gestos nervosos, e principalmente de Piper Laurie como sua mãe, fanática religiosa. Mais do que os colegas, é ela a responsável pelo banho de sangue que a menina, que possui dons telecinéticos, promove no Baile de Formatura. Mesmo que o fanatismo não cegue a menina, que sonha em interagir com seus colegas e sabe que o dom que possui não é uma manifestação do demônio, uma vida inteira criada dentro dos costumes castradores da mãe alimentam a explosão dos poderes ocultos da menina, que é ridicularizada no Baile.

Rever “Carrie” com atenção mostra um domínio invejável de DePalma sobre o tema ao qual se debruça. Ele alterna momentos tocantes e idílicos com abruptas intervenções no clima da cena, de forma tão brusca que levam o espectador de um lado a outro de sua percepção. O inocente banho é repentinamente interrompido pelo terror de Carrie com a primeira menstruação em um vestiário repleto de garotas prontas a ridicularizarem-na. A expectativa de um garoto, circundando as árvores em planos alternados de câmera, atrás de Carrie, é interrompido abruptamente pela manifestação rápida dos seus poderes. Na sua primeira aparição, a câmera sobrevoa a quadra do colégio para repousar, candidamente, no rosto de Carrie, na primeira manifestação de sua pouca popularidade. E toda e qualquer manifestação dos poderes ocultos da jovem surgem em momentos rápidos, que estouram sob um único acorde da trilha de Pino Donaggio – trilha, aliás, exemplar, que bebe na fonte de Bernard Herrmann mas consegue alternar os acordes assustadores com momentos tocantes.

E a construção do horror adolescente, em suas várias faces, atinge seu auge estilístico na seqüência do baile: A transformação da jovem, de Rainha do Baile para Rainha da Morte, quando Carrie, coberta de sangue, exibe seus olhos abertos e frios, sua expressão sem emoção, quando as portas se fecham, e a tela se divide em duas para mostrar a reação do público apavorado e as expressões de Carrie, apenas contemplando a destruição que promove. Já seria digno de constar em um dos grandes momentos da carreira de DePalma – que ensaia os momentos de slowmotion e antecipação que retomaria com tanto brilhantismo posteriormente na seqüência em que Amy Irving prevê o que está para acontecer mas tenta, sem sucesso, impedir. A força dos grandes olhos de Sissy Spacek mesclados com o vermelho que cobre seu rosto são assustadores e DePalma volta a trazer o espectador para o outro lado da moeda quando ela retorna para casa, apenas para, novamente, girar o botão novamente em uma seqüência que atesta toda a repulsa do público para com a figura da mãe. Essa capacidade de trabalhar tão bem o terror de forma não gratuita e constante coloca o filme de DePalma como um dos grandes momentos do gênero.

(Carrie, EUA, 1976 ) Direção de Brian DePalma, com Sissy Spacek, Piper Laurie, Amy Irving, William Kat, Nancy Allen, John Travolta. 98min

Afundem o Bismarck

Escrito por Fábio Rockenbach





Não é por acaso que “Afundem o Bismarck” de Lewis Gilbert é mais conhecido como um semi-documentário do que, propriamente, um filme de ficção. Todo o desenrolar da trama, baseado em livro de CS Forester, é conduzida de forma documental, extremamente burocrática, sem sub-tramas de destaque – ou ao menos que consigam emergir com algum destaque – complementando a trama principal. Mas essa reconstituição da operação deflagrada pelo comando naval aliado para afundar o Bismarck, couraçado de guerra que era o orgulho da frota alemã e o mais poderoso navio singrando os mares em 1941, não é chata para quem gosta do tema. Soa educacional, mas fácil de assistir.
“Afundem o Bismarck” lembra muito “A Caçada ao Outubro Vermelho”, mas a temática é tão óbvia que o fato do filme de McTiernam beber dessa fonte não significa nenhuma inspiração. Obviamente, a dinâmica da história de 1989 é mais ágil, menos didática, mais absorvente. O que não significa, também, que “Afundem o Bismarck” seja enfadonho, mesmo que seja um filme onde muitas das emoções e conflitos não saiam do gabinete – pelo menos as que têm alguma profundidade à trama. Mesmo essas, porém, não são aprofundadas a um nível minimamente compreensível para elementos do roteiro que recebem tanta menção, como todo o plot envolvendo o filho de Sheppard, o oficial interpretado por Kenneth More que assume o comando das operações navais aliadas justamente quando o Bismarck é avistado em seu ancoradouro na Noruega. Se a trama paralela envolvendo o filho de Sheppard serve para demonstrar o alcance das emoções aparentemente inexistentes do personagem, simplesmente não precisaria ser mais do que mencionado, porque não evolui nas poucas cenas em que ele aparece. É um filme onde as emoções e conflitos não saem do gabinete e ali se estabelece o único núcleo interpretativo de peso (onde se destaca Dana Wynter como Davis, assessora particular de Sheppard)
O almirante Lutjens de Karel Stepanek, grande vilão do filme, é um escalador militar, um homem que admite ter sido negligenciado, e usa sua posição – e o navio – para ser visto, celebrado e bajulado. Sua petulância e auto-suficiência são a derrota do Bismarck. Lutjens é uma caricatura, típica da época em que o filme foi feito, apresentado mais como um personagem imaginado ( vilanesco, obviamente ) do que humano. Olhos esbugalhados, frases de efeito que não se enquadram em um vilão minimamente real (nenhum oficial alemão na guerra dizia algo como “Nunca se esqueçam que são nazistas”).
Um dos maiores problemas do filme de Gilbert é não estabelecer no público a dimensão e importância da caçada que conduz toda a trama. Ele pouco mostra do poderoso Bismarck. Falha, assim, em estabelecer a dimensão da ameaça que movimenta todo o comando naval aliado – os efeitos, baseados em cenas de documentários e maquetes não prejudicam o filme como muitos afirmam. O maior erro é que em nenhum momento a grandiosidade e o poder do Bismarck é convincentemente apresentado ao público.
Historicamente, na cronologia dos acontecimentos, o filme é quase impecável, empatia ampliada pela participação de Ed Murrow, um dos mais famosos repórteres da história do jornalismo norte-americano, citando sua célebre reportagem "This is London...", considerada uma das três maiores da história do jornalismo – mas falta um ritmo crescente de tensão e interesse. É linear em seu ritmo, nunca amplia ou o diminui. Quando chegamos ao ponto culminante da caçada, tudo termina como se fosse apenas mais uma página do roteiro. Não a ação em si, mas a construção do clima narrativo torna-se tão fechada quanto o roteiro linear. O estilo documental de “Afundem o Bismarck” acaba sendo os dois lados da moeda: é o grande mérito pela autenticidade, e o calcanhar de aquiles pela falta de emoção. Nada que admiradores do gênero venham a reclamar muito.
(Sink the Bismarck, EUA, 1960 ) Direção de Lewis Gilbert, com Kenneth More, Dana Wynter, Carl Mohner, Laurence Naismith, Karel Stepanek, Maurice Denham, Geoffrey Keen, Michael Hordern, Esmond Knight, Edward R Murrow