Muitos cineastas, em cem anos de cinema, podem ser chamados de gênios - menos, porém, do que o senso comum acredita. Pouquíssimos são lembrados como malditos. Orson Welles foi maldito. Foi um maldito com idéias próprias, inteligência acima da média e uma bem vinda teimosia, sem a qual ele talvez desistisse do cinema para se dedicar a qualquer outra forma de arte - muito provavelmente teria algum tipo de sucesso nessa empreitada. Welles foi maldito porque teve a infelicidade de cruzar com as pessoas erradas na hora errada. Fosse Europeu, talvez tivesse a liberdade - apesar de não poder contar, então, com o financiamento - para realizar seus filmes do modo como imaginava. Welles foi maldito numa América cinematográfica em ebulição, mas provavelmente agradeceria por não ter vislumbrado as mazelas sociais que Rosselinis, DeSicas e outros encararam na mesma época. Welles foi maldito porque quem controlava o processo, naquela época, não tinha o alcance que sua mente tinha ao pensar o cinema. E acima de tudo, Welles foi maldito porque ousou enfrentar William Randolph Hearst, e pouco restou para ele num ambiente movido à influências e ao poder da mídia que seu inabalável talento. “A falsidade é tão antiga quanto o jardim do Éden.” disse ele . Mais do que uma constatação óbvia, um desabafo.
Antes de provocar, quando conseguiu controlar o processo criativo, deu ao mundo a história de Charles Kane, e já então, mesmo recebido com entusiasmo como um gênio precoce aos 25 anos, recebeu o recado da indústria do entretenimento no Oscar: apenas um prêmio, o de melhor roteiro.
É quando Quinlan planta duas bananas de dinamite no quarto de um mexicano que havia tido um caso com a filha do milionário que suas posições se chocam com força com os valores do honesto Vargas, e para tirar mais esse peso do seu caminho, ele se junta à máfia local para eliminar Vargas, usando a inocente Susan como armadilha.
Foi em “A Marca da Maldade” que Janeth Leigh, cinco anos antes de ser esfaqueada em um chuveiro no Bates Motel, descobriria uma das grandes diferenças de Welles para outros grandes nomes da época. Ele encarava o processo de criação de roteiro e dos personagens como um processo em constante evolução e desenvolvimento ao longo das filmagens. Umka característica bem diferente da que Leigh encontraria nas mãos de Alfred Hitchcok, por exemplo: “Mr. Hitchcok chega ao set com o filme pronto na cabeça, e não admite uma alteração sequer. Orson entende que o filme é um processo em evolução que pode melhorar sempre”.
Talvez tenha sido esse tipo de improvisação e evolução que tenha deixado tão confusos os montadores contratados para montar o filme de Orson, e com os quais ele se desentendeu. Temerosos pelo sucesso da produção após assistirem a uma cópia não acabada do filme, montada segundo as concepções de Orson, o estúdio proibiu o diretor de chegar próximo à sala de edição e filmou cenas adicionais para “amarrar melhor a trama”, ou o público, segundo eles, não entenderia. Na verdade, a montagem de Welles previa ações ocorrendo ao mesmo tempo e alternando-se na tela, algo avançado demais para os executivos da Universal. Eles haviam adorado o que viram no copião, mas ficaram assustados na montagem. Desiludido, Welles ainda foi obrigado a participar da gravações das cenas extras – implorou para poder dirigi-las, ao menos, mas nem isso lhe foi permitido.
Na década de 90 uma carta escrita por Welles para o estúdio, pedindo que fosse mantida sua visão original da história – e dando instruções de como fazê-lo – serviu como base para o relançamento do clássico seguindo a visão que seu criador tivera. E não havia sido a primeira vez: em 1942,. “Soberba” sofreu o mesmo tipo de mutilação, perdendo 40 minutos do núcleo central imaginado por Orson e teve seu final gravado por outro diretor.
O título inicial de “Touch of Evil” foi trocado por Welles mudando o Insígnia do original ( Insígnia da Maldade ) por Toque ( Toque da Maldade, o “Marca” daqui é privilégio do departamento de distribuição da Universal nos anos 50 ) mais condizente com a personalidade de seu personagem. Para Welles, não era o distintivo ou a função de Quinlan que eram maus. Não é o senso de dever de Quinlan que remete à maldade, são seus métodos. Em seu íntimo, ele realmente acredita estar fazendo o certo para punir quem sua intuição diz que é culpado. E na visão torpe de Quinlan, a corrupção e a falsidade não são formas de fraqueza, mas veículos para se alcançar a justiça dos homens, aquela que ele poderá contemplar com deleite. Welles poucas vezes pôde contemplar a justiça dos homens no que diz respeito aos seus filmes,
O toque de maldade que ele reconheceu e rotulou em Quinlan acabou sendo o mesmo que o rotulou como uma pedra no sapato por Hollywood, como uma prova plantada para justificar que usassem de seu talento até o momento que julgassem necessário, em uma época onde o respeito à criação era subordinado ao domínio absoluto dos donos dos estúdios. Como ele mesmo afirmou, “O pior é terminarmos de escrever um capítulo e não ouvirmos o aplauso da máquina de escrever.” Talvez, para Welles, maior que a silenciosa ovação dos que o reconheceram ao longo de 4 décadas de inspiração tenha sido o sutil boicote da ignorância.
Antes de provocar, quando conseguiu controlar o processo criativo, deu ao mundo a história de Charles Kane, e já então, mesmo recebido com entusiasmo como um gênio precoce aos 25 anos, recebeu o recado da indústria do entretenimento no Oscar: apenas um prêmio, o de melhor roteiro.
O tempo legou a "Cidadão Kane" as honrarias, devoções e lideranças em listas de todas as línguas e tempos como o filme dos filmes, mas para Welles, os anos 40 e 50 foram um misto de experimentação, descoberta, desilusão e perseguição. Estava sempre à frente ao se mencionarem os grandes nomes do cinema daquela época, e também era o mais lembrado quando se mencionavam os mais perfeccionistas e problemáticos. Talvez essa devoção a ver inteligência nas telas, e de experimentar o que fosse possível com uma câmera nas mãos assustasse tanto executivos de estúdios, buscando enfrentar a concorrência da televisão e saciar a sede de diversão do público. Talvez Welles devesse ter nascido na França, mas aí então a própria história do cinema seria diferente.
A maldição sobre o enfant terrible durante 4 décadas. A genialidade que lhe trouxe a ovação foi a mesma que lhe fechou caminhos e impediu que visse nas telas sua visão para filmes essenciais no exercício de compreender o cinema. Visitou Shakeaspeare, Mellville e Kafka, deixou inacabados projetos utópicos e, na maior das utopias, jamais conseguiu transformar em filme sua visão para o Don Quixote de Cervantes. Entre 1941 e 1955, passeou entre a história de um milionário e a vida conservadora ( e os valores fúteis e ultrapassados ) da família Amberson, destilou charme e mistério com A Dama de Shangai e emprestou seu rosto e seu carisma para Carol Reed fazer de O Terceiro Homem o melhor filme britânico da história, segundo o Brittish Film Institute. E em 1958, dez anos depois de filmar pela última vez na América - Macbeth, de 1948 - Orson Welles voltava a dirigir uma produção de um estúdio americano, graças à influência de Charlton Heston, e sob desconfiança da Universal. No seu retorno, acabaria entregando outra jóia ao cinema, "A Marca da Maldade “ ( Touch of Evil ). Welles, como era de praxe, ignorou as recomendações do estúdio, reescreveu o roteiro e transformou "A Marca da Maldade" num clássico que não envelhece.
Responsável pela contratação desconfiada de Welles para retomar a direção nos Estados Unidos pela mesma produtora para a qual ele já havia dirigido “O Estranho” na década anterior, Charlton Heston é, talvez, um dos que melhor definiram o gênio:
“Ele não conseguia nenhum filme para dirigir porque, entre outras coisas, era considerado pródigo e perdulário. [ ... ] Hoje todo mundo reconhece que Orson merecia ter tido mais sorte na indústria cinematográfica, mas também é verdade que ele poderia ter sido mais compreensivo com as necessidades da indústria”.
Para Heston, que Welles dirigiu e contracenou em “A Marca da Maldade”, Welles era pródigo em conquistar a equipe inteira com seu gênio ativo e mente aberta – uma certa cumplicidade – cativando atores e equipe técnica, mas pecava por não dispender o mesmo tempo e esforço para cativar os homens que pagavam os seus filmes: Welles desprezava os executivos dos estúdios e não conseguia ver inteligência neles, “generalizando” a classe.
No caso de “Touch Of Evil”, Welles foi impedido de filmar em Tijuana, o que, segundo ele, seria perfeito para dar o clima necessário ao policial ambientado na fronteira entre México e Estados Unidos – e ele bem sabia porque. O estúdio queria mantê-lo por perto para poder controlá-lo. Sabiam que, sozinho, sua impulsividade o levaria a vôos maiores do que eles estavam dispostos a pagar ou suportar.
Foi John Ford quem ensinou a Welles, anos antes, a tática: “dê a eles o que querem por dois dias e tenha dois meses de tranqüilidade”. Um circo foi armado para os primeiros dois dias das filmagens, sob a conivência de Heston, Leigh e os demais membros da equipe, ciente estava Welles que pelo menos um ou dois espiões do estúdio estariam nas gravações. E nos dois primeiros dias, impecavelmente, as filmagens começaram na hora e renderam de forma surpreendente – 13 páginas do roteiro haviam sido filmadas, para alegria dos exultantes e temerosos executivos, que a cada duas horas eram informados do andamento das gravações. Passados os dois dias, o diretor desabafaria à equipe: “Agora que não temos que dar satisfações a ninguém, vamos nos concentrar no filme”.
“A Marca da Maldade” é um filme que pertencia, literalmente, a Welles. Após assumir a responsabilidade pela direção e receber carta branca sobre o roteiro, reescreveu página por página a história baseada no livro de Whitt Masterson, “Badge of Evil”. Mais do que isso, durante as filmagens, Welles reescrevia as falas do elenco e o roteiro durante o dia – as gravações eram feitas à noite, para evitar visitas inoportunas. “Se alguém deve receber algum crédito por uma história banal se tornar o que se tornou, é Orson” admite Heston, já que mesmo os atores só sabiam suas falas horas antes da gravação.
Antes de se tecer mais comentários acerca da obra de Orson Welles e da genialidade ( mais uma vez ) demonstrada pelo enfant térrible americano em "A Marca da Maldade", é preciso relembrar como começa a incursão de Welles no noir, ambientado na fronteira entre Estados Unidos e México. O ano é 1955, e a obra, apesar das décadas que se passaram até conhecermos a visão de Welles, tornou-se para muitos o segundo grande filme da carreira de Welles - se é que alguém que fez A Dama de Shangai, Soberba e este Touch of Evil pode ter a qualidade de seus filmes rotuladas em uma mera lista de qual é melhor ou porque.
É na sequência inicial que Welles mostra que não encarava a produção como um mero filme B. Raramente um filme era para ele pouco menos do que uma chance de exercitar idéias brilhantesm não necessariamente novas, mas aplicadas de formas inéditas. Nesta seqüência inicial, acompanhamos um desconhecido colocando uma bomba em um carro, e nos três minutos seguintes, vamos viajar pela cidade de fronteira, idealizada por Welles e pelos diretores de arte Robert Clatworthy e Alexander Golitzen, num único plano sequência sem um corte sequer, passando sobre telhados ao som da música de cabaret, contemplando as ruas movimentadas de viajantes e moradores locais que transformam a fronteira num shopping informal. Acompanhamos a trajetória do carro mostrado no início da cena, enquanto somos apresentados ( também informalmente ) aos personagens de Charlton Heston e Janet Leigh. Dezenas de metros de movimento de câmera e perfeita orquestração de atores e figurantes sem um corte sequer, até o final da cena, que irá, também, definir o começo da genial trama que coloca "A Marca da Maldade" ao lado de clássicos como Á Beira do Abismo e O Terceiro Homem.
Los Robles é o povoado na fronteira onde o polivial Vargas ( Heston ) e sua esposa Susan ( Janeth Leigh ) passam a lua de mel. É justamente na fronteira que uma bomba explode matando um milionário e iniciando um tenso jogo de valores morais e éticos entre Vargas e o xerife Hank Quinlan ( Welles, assustadoramente gosto como uma baleia ) . Como a bomba foi armada em território mexicano, o racista Quinlan precisa aceitar a intromissão do mexicano Vargas nas investigações – e essa intromissão acaba entrando em choque com as noções de justiça de Quinlan.
Não que o xerife Quinlan seja de forma simplista o vilão da história. É o elemento a ser criticado, abominado e rejeitado, mas, como sempre, valores e comportamentos não são expostos com apenas dois lados na visão de Welles, bem ou mal. Marlene Dietrich, fazendo uma ponta como uma cafetina decadente, é a que melhor define o caráter do personagem de Welles: “Um excelente detetive, um péssimo policial”. Desde que perdeu a esposa – cujo assassino jamais foi preso – Quinlan prometera jamais deixar um assassino sair livre de suas mãos outra vez, nem que para isso fosse necessário criar um culpado. Sua noção de justiça, baseada nos seus pressentimentos e na sua intuição. Não importa o que fosse preciso ou quem devesse morrer, alguém pagaria pelos erros – mesmo que de outros.
A maldição sobre o enfant terrible durante 4 décadas. A genialidade que lhe trouxe a ovação foi a mesma que lhe fechou caminhos e impediu que visse nas telas sua visão para filmes essenciais no exercício de compreender o cinema. Visitou Shakeaspeare, Mellville e Kafka, deixou inacabados projetos utópicos e, na maior das utopias, jamais conseguiu transformar em filme sua visão para o Don Quixote de Cervantes. Entre 1941 e 1955, passeou entre a história de um milionário e a vida conservadora ( e os valores fúteis e ultrapassados ) da família Amberson, destilou charme e mistério com A Dama de Shangai e emprestou seu rosto e seu carisma para Carol Reed fazer de O Terceiro Homem o melhor filme britânico da história, segundo o Brittish Film Institute. E em 1958, dez anos depois de filmar pela última vez na América - Macbeth, de 1948 - Orson Welles voltava a dirigir uma produção de um estúdio americano, graças à influência de Charlton Heston, e sob desconfiança da Universal. No seu retorno, acabaria entregando outra jóia ao cinema, "A Marca da Maldade “ ( Touch of Evil ). Welles, como era de praxe, ignorou as recomendações do estúdio, reescreveu o roteiro e transformou "A Marca da Maldade" num clássico que não envelhece.
Responsável pela contratação desconfiada de Welles para retomar a direção nos Estados Unidos pela mesma produtora para a qual ele já havia dirigido “O Estranho” na década anterior, Charlton Heston é, talvez, um dos que melhor definiram o gênio:
“Ele não conseguia nenhum filme para dirigir porque, entre outras coisas, era considerado pródigo e perdulário. [ ... ] Hoje todo mundo reconhece que Orson merecia ter tido mais sorte na indústria cinematográfica, mas também é verdade que ele poderia ter sido mais compreensivo com as necessidades da indústria”.
Para Heston, que Welles dirigiu e contracenou em “A Marca da Maldade”, Welles era pródigo em conquistar a equipe inteira com seu gênio ativo e mente aberta – uma certa cumplicidade – cativando atores e equipe técnica, mas pecava por não dispender o mesmo tempo e esforço para cativar os homens que pagavam os seus filmes: Welles desprezava os executivos dos estúdios e não conseguia ver inteligência neles, “generalizando” a classe.
No caso de “Touch Of Evil”, Welles foi impedido de filmar em Tijuana, o que, segundo ele, seria perfeito para dar o clima necessário ao policial ambientado na fronteira entre México e Estados Unidos – e ele bem sabia porque. O estúdio queria mantê-lo por perto para poder controlá-lo. Sabiam que, sozinho, sua impulsividade o levaria a vôos maiores do que eles estavam dispostos a pagar ou suportar.
Foi John Ford quem ensinou a Welles, anos antes, a tática: “dê a eles o que querem por dois dias e tenha dois meses de tranqüilidade”. Um circo foi armado para os primeiros dois dias das filmagens, sob a conivência de Heston, Leigh e os demais membros da equipe, ciente estava Welles que pelo menos um ou dois espiões do estúdio estariam nas gravações. E nos dois primeiros dias, impecavelmente, as filmagens começaram na hora e renderam de forma surpreendente – 13 páginas do roteiro haviam sido filmadas, para alegria dos exultantes e temerosos executivos, que a cada duas horas eram informados do andamento das gravações. Passados os dois dias, o diretor desabafaria à equipe: “Agora que não temos que dar satisfações a ninguém, vamos nos concentrar no filme”.
“A Marca da Maldade” é um filme que pertencia, literalmente, a Welles. Após assumir a responsabilidade pela direção e receber carta branca sobre o roteiro, reescreveu página por página a história baseada no livro de Whitt Masterson, “Badge of Evil”. Mais do que isso, durante as filmagens, Welles reescrevia as falas do elenco e o roteiro durante o dia – as gravações eram feitas à noite, para evitar visitas inoportunas. “Se alguém deve receber algum crédito por uma história banal se tornar o que se tornou, é Orson” admite Heston, já que mesmo os atores só sabiam suas falas horas antes da gravação.
Antes de se tecer mais comentários acerca da obra de Orson Welles e da genialidade ( mais uma vez ) demonstrada pelo enfant térrible americano em "A Marca da Maldade", é preciso relembrar como começa a incursão de Welles no noir, ambientado na fronteira entre Estados Unidos e México. O ano é 1955, e a obra, apesar das décadas que se passaram até conhecermos a visão de Welles, tornou-se para muitos o segundo grande filme da carreira de Welles - se é que alguém que fez A Dama de Shangai, Soberba e este Touch of Evil pode ter a qualidade de seus filmes rotuladas em uma mera lista de qual é melhor ou porque.
É na sequência inicial que Welles mostra que não encarava a produção como um mero filme B. Raramente um filme era para ele pouco menos do que uma chance de exercitar idéias brilhantesm não necessariamente novas, mas aplicadas de formas inéditas. Nesta seqüência inicial, acompanhamos um desconhecido colocando uma bomba em um carro, e nos três minutos seguintes, vamos viajar pela cidade de fronteira, idealizada por Welles e pelos diretores de arte Robert Clatworthy e Alexander Golitzen, num único plano sequência sem um corte sequer, passando sobre telhados ao som da música de cabaret, contemplando as ruas movimentadas de viajantes e moradores locais que transformam a fronteira num shopping informal. Acompanhamos a trajetória do carro mostrado no início da cena, enquanto somos apresentados ( também informalmente ) aos personagens de Charlton Heston e Janet Leigh. Dezenas de metros de movimento de câmera e perfeita orquestração de atores e figurantes sem um corte sequer, até o final da cena, que irá, também, definir o começo da genial trama que coloca "A Marca da Maldade" ao lado de clássicos como Á Beira do Abismo e O Terceiro Homem.
Los Robles é o povoado na fronteira onde o polivial Vargas ( Heston ) e sua esposa Susan ( Janeth Leigh ) passam a lua de mel. É justamente na fronteira que uma bomba explode matando um milionário e iniciando um tenso jogo de valores morais e éticos entre Vargas e o xerife Hank Quinlan ( Welles, assustadoramente gosto como uma baleia ) . Como a bomba foi armada em território mexicano, o racista Quinlan precisa aceitar a intromissão do mexicano Vargas nas investigações – e essa intromissão acaba entrando em choque com as noções de justiça de Quinlan.
Não que o xerife Quinlan seja de forma simplista o vilão da história. É o elemento a ser criticado, abominado e rejeitado, mas, como sempre, valores e comportamentos não são expostos com apenas dois lados na visão de Welles, bem ou mal. Marlene Dietrich, fazendo uma ponta como uma cafetina decadente, é a que melhor define o caráter do personagem de Welles: “Um excelente detetive, um péssimo policial”. Desde que perdeu a esposa – cujo assassino jamais foi preso – Quinlan prometera jamais deixar um assassino sair livre de suas mãos outra vez, nem que para isso fosse necessário criar um culpado. Sua noção de justiça, baseada nos seus pressentimentos e na sua intuição. Não importa o que fosse preciso ou quem devesse morrer, alguém pagaria pelos erros – mesmo que de outros.
É quando Quinlan planta duas bananas de dinamite no quarto de um mexicano que havia tido um caso com a filha do milionário que suas posições se chocam com força com os valores do honesto Vargas, e para tirar mais esse peso do seu caminho, ele se junta à máfia local para eliminar Vargas, usando a inocente Susan como armadilha.
Foi em “A Marca da Maldade” que Janeth Leigh, cinco anos antes de ser esfaqueada em um chuveiro no Bates Motel, descobriria uma das grandes diferenças de Welles para outros grandes nomes da época. Ele encarava o processo de criação de roteiro e dos personagens como um processo em constante evolução e desenvolvimento ao longo das filmagens. Umka característica bem diferente da que Leigh encontraria nas mãos de Alfred Hitchcok, por exemplo: “Mr. Hitchcok chega ao set com o filme pronto na cabeça, e não admite uma alteração sequer. Orson entende que o filme é um processo em evolução que pode melhorar sempre”.
Talvez tenha sido esse tipo de improvisação e evolução que tenha deixado tão confusos os montadores contratados para montar o filme de Orson, e com os quais ele se desentendeu. Temerosos pelo sucesso da produção após assistirem a uma cópia não acabada do filme, montada segundo as concepções de Orson, o estúdio proibiu o diretor de chegar próximo à sala de edição e filmou cenas adicionais para “amarrar melhor a trama”, ou o público, segundo eles, não entenderia. Na verdade, a montagem de Welles previa ações ocorrendo ao mesmo tempo e alternando-se na tela, algo avançado demais para os executivos da Universal. Eles haviam adorado o que viram no copião, mas ficaram assustados na montagem. Desiludido, Welles ainda foi obrigado a participar da gravações das cenas extras – implorou para poder dirigi-las, ao menos, mas nem isso lhe foi permitido.
Na década de 90 uma carta escrita por Welles para o estúdio, pedindo que fosse mantida sua visão original da história – e dando instruções de como fazê-lo – serviu como base para o relançamento do clássico seguindo a visão que seu criador tivera. E não havia sido a primeira vez: em 1942,. “Soberba” sofreu o mesmo tipo de mutilação, perdendo 40 minutos do núcleo central imaginado por Orson e teve seu final gravado por outro diretor.
O título inicial de “Touch of Evil” foi trocado por Welles mudando o Insígnia do original ( Insígnia da Maldade ) por Toque ( Toque da Maldade, o “Marca” daqui é privilégio do departamento de distribuição da Universal nos anos 50 ) mais condizente com a personalidade de seu personagem. Para Welles, não era o distintivo ou a função de Quinlan que eram maus. Não é o senso de dever de Quinlan que remete à maldade, são seus métodos. Em seu íntimo, ele realmente acredita estar fazendo o certo para punir quem sua intuição diz que é culpado. E na visão torpe de Quinlan, a corrupção e a falsidade não são formas de fraqueza, mas veículos para se alcançar a justiça dos homens, aquela que ele poderá contemplar com deleite. Welles poucas vezes pôde contemplar a justiça dos homens no que diz respeito aos seus filmes,
O toque de maldade que ele reconheceu e rotulou em Quinlan acabou sendo o mesmo que o rotulou como uma pedra no sapato por Hollywood, como uma prova plantada para justificar que usassem de seu talento até o momento que julgassem necessário, em uma época onde o respeito à criação era subordinado ao domínio absoluto dos donos dos estúdios. Como ele mesmo afirmou, “O pior é terminarmos de escrever um capítulo e não ouvirmos o aplauso da máquina de escrever.” Talvez, para Welles, maior que a silenciosa ovação dos que o reconheceram ao longo de 4 décadas de inspiração tenha sido o sutil boicote da ignorância.
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