Daney e a arte de escrever sobre cinema

Escrito por Fábio Rockenbach


Um pequeno exemplo da razão por que Serge Daney é tão idolatrado por críticos da velha guarda - muitos da nova geração não conhecem seus trabalhos. Daney se mostra, no texto abaixo, assustado pelo fato de ter largado de mão “8 1/2″ de Fellini para permanecer absorto em frente à televisão assistindo a “O Veredito”, filme do começo dos anos 80 de Sidney Lumet que tem como principal atração a atuação depressiva e melancólica - acrescenta-se o “ótima” - de Paul Newman. Daney não gosta do filme, diz que é “mal filmado, mal contado, tudo” mas é absorvido. Assiste até o fim e tenta teorizar do porquê, de tentar entender encaixar na sua linha de raciocínio as razões de a televisão e sua programação pobre absorverem o público.

No fim, uma palhinha de porquê ele foi um dos grandes críticos de cinema: ele se apega a uma cena em particular de “O Veredito”, simples, despercebida para quase todos, para analisar de forma sucinta de uma forma que poucos conseguiriam fazer. Daney foi ótimo. A cortesia é do “Dicionários de Cinema“, que há um bom tempo vem traduzindo o que há de bom nos escritos sobre cinema do século passado.

26 Março 1988 – Ontem, entre a tarde e a noite, em frente à TV. Abandono rapidamente 8 ½, mesmo que nunca o tenha visto, mas me exaspera e me pego assistindo até o fim um filme que objetivamente acho mal feito, mal contado, mal tudo: O Veredicto de Sidney Lumet. Esquizofrenia da televisão: nós não só assistimos o que não é bom (não é bem feito), mas nós vemos até melhor do que no cinema (edição, por exemplo), e mesmo assim nós preferimos ver um filme mal feito do que um bem feito. Ou ainda: os conceitos de “bem feito” e “mal feito” não são relevantes na televisão. Ou o filme tem uma força tamanha que se impõe ou nós estamos na relatividade de um mundo de imagens, numa banheira do imaginário, onde tudo é interessante. Isso depende do clima do momento. Ontem eu preferi assistir Mason e especialmente Newman compondo com idade, com tudo. Lumet é o arquetípico cineasta que filma do ponto de vista de ninguém, portanto com uma eficiência abstrata, tão abstrata que é reduzida ao nonsense de roteiro. Ele acelera quando não há razão pra isso. Um belo momento. Newman finalmente encontrou a enfermeira que “sabe” o que aconteceu. Ela cuida de crianças em Chelsea. Ela tem uma bela face de santa de sindicato. Ela está no playground; Newman, que chegou de Boston, está abordando-a desajeitadamente. Close-up no bilhete Boston-Nova Iorque, que cai de seu bolso. E lá, um pequeno truque do velho Lumet, um pouco da verdadeira velocidade: contracampo em Newman que não está mais aparecendo: “Você vai me ajudar?” Ela vai ajudá-lo, não porque o roteiro exige isso, mas porque nós fomos colocados no lugar dela (pela mise en scène) e ela no nosso, e porque o desejo de que ela o ajude foi inscrito no filme. Coisas velhas mas existentes, pelo amor de Deus!
O exemplo do filme de Lumet, uns dias atrás (“Você vai me ajudar?”) soma tudo isso. É impuro ( ou pouco refinado) mas suficiente. O plano de Newman – de um Newman que pede ajuda e pede duas vezes: para o outro personagem (off) e a mim que – por um instante – fui capaz de me colocar no filme no lugar desse personagem ausente da imagem. E ele será ajudado duas vezes: no roteiro e por mim (neste momento, eu aceito seguir com o filme, e então fazê-lo funcionar

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