O Dia dos Mortos (1985)

Escrito por Fábio Rockenbach





Há um sadismo perverso rondando cada frame do terceiro filme de George Romero sobre os zumbis – e na soma das histórias, “O Dia dos Mortos" complementa a narrativa dos filmes anteriores do mestre de forma episódica – não são os mesmos personagens, mas é a mesma trama de fundo, é como se todos fossem interligados pelo mesmo background aterrorizante. A crítica da época buscou – e boa parte da crítica de hoje ainda busca – a mesma profundidade metafórica de “O Despertar dos Mortos”, mas Romero foi mais sutil e mais gráfico. Bastou para que seu terceiro filme fosse elevado à condição de “comercial demais”. Besteira, o cara continua falando o mesmo idioma.
O mundo de Romero acabou, tornou-se uma terra fantasma sem idiomas ou diferenças raciais na superfície. Os homens se escondem como ratos, se acotovelam em subterrâneos, olham o mundo atrás de grades. A ironia dessa situação é que o homem, que se esconde aterrorizado de medo dos mortos vivos que dominam o mundo e perambulam cambaleantes e sorrateiros é o mesmo homem que trata os zumbis como animais. Há uma dubiedade fascinante nesse cenário criado por Romero. Somos os aterrorizados e nos escondemos, mas também laçamos os zumbis como gado, os tratamos como meros pedaços de carne ambulante. Essa dubiedade de discurso é o grande valor dos filmes de Romero - o que era uma trilogia tornou-se já um sexteto de discurso afinado e inimitável.
O Dia dos Mortos” é, da trilogia clássica, o mais nauseante e explícito. Mas se Romero se absteve das parábolas sociais mais elevadas – presentes em “O Despertar dos Mortos”, seu filme mais “leve”e ainda assim, o melhor – manteve a carga de ironia indissociável do seu discurso, se fartou no grotesco - as mortes nunca tinham sido tão explicitas. O filme apavorou platéias em 1985 e nas locadoras chegou a ter sua locação proibida para menores – e disso eu lembro bem. Corpos rasgados ao meio, cabeças arrancadas, vísceras expostas... Cenas comuns em alguns filmes de terror hoje, mas estamos falando, vejam, de 1985... quase 25 anos atrás, quando quem arriscava esse tipo de subterfúgio vinha de fora do esquemão hollywoodiano, se escondia na periferia ou assinava com sobrenome italiano.
Em “O Dia dos Mortos”, civis e militares dividem uma instalação subterrânea, esperando não se sabe o que, para que um dia possam fugir, mas sem saber para onde. Não há destino definidos, apenas a busca por mais pessoas e por algo que faça os dias parecerem menos opressores. Essa opressão fará a diferença e será o estopim para que tudo desmorone. Quer dizer... é o fim do mundo, quase literalmente. Ninguém troca idéias sobre seus planos para o futuro, e o que o diretor joga no liquidificador é tensão e diálogos rápidos. É confronto em todas as suas instâncias. É o cientista contra os militares, homem(ns) contra mulher, negro contra brancos, pacifistas idealistas contra reacionários sádicos... vivos contra mortos.
Aliás, o cientista que usa cadáveres e zumbis capturados para tentar entender seu comportamento é o eco de ironia que Romero insere no seu pequeno mundo virado de ponta cabeça. O diretor se dá ao luxo de, pela primeira vez, tornar um Zumbi personagem, é Bub é um personagem de tanta força que captura a platéia, elemento essencial para que qualquer intenção narrativa funcione. No fundo, ele tem mais profundidade que a quase totalidade dos humanos do seu filme, e isso não foi um desvio acidental... Romero é o cara.

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