Império do Sol

Escrito por Fábio Rockenbach





“O Império do Sol” é menos um filme de guerra do que uma história de como um ser humano pode se esconder dentro de uma cápsula e fazer do mundo exterior não um completo desconhecido, mas um universo moldado à suas vontades, e nele sobreviver. Principalmente quando se é uma criança. No fundo, é disso que se trata aquele que talvez seja o mais descaradamente apelativo filme de Spielberg: a história de uma guerra que é transformada em um mundo particular. Em que um menino molda as circunstâncias e as interpreta de tal maneira a fazer com que as resistências se dobrem. A cápsula na qual ele se refugia é sua paixão por aviões. O mundo que ele cria é tão seu que se torna um mini-cosmo que recheia de importância coisas que pareceriam banais. Que não se veja “Império do Sol” como um filme de guerra ou a odisséia de um menino sobrevivendo aos horrores da guerra ( o mesmo tipo de frases prontas que surgem sempre que se fala no filme ). É uma história que quase foi posta a perder pela vontade de Spielberg de suplantar seu material, sem perceber o quão bom ele é.

A paixão anormal por aviões do jovem Jim, ironicamente, acaba separando-o do seu mundo, mas o mantém vivo no novo universo. É por causa de um avião, no caso um de brinquedo, que ele se separa dos pais durante a confusão que se instala em Shangai quando tropas japonesas invadem a cidade durante a 2ª Guerra Mundial. Mas é irônico constatar que são vários os “mundos” que surgem na trajetória de Jim – uma história autobiográfica do escritor JJ Ballard. O primeiro mundo irreal é aquele no qual ele vive com seus pais no meio da sociedade britânica que se forma em Shangai. Uma realidade tão fantasiosa que faz com que o garoto enxergue as mazelas nativas do local como uma curiosidade mórbida. Não à toa, ele chega a dizer em certo momento que “é inglês, mas nunca pisou na Inglaterra”. É um inglês, mas seu país soa tão falso e distante para ele que talvez por isso alimente a vontade de entrar para o grupo americano durante os anos de cativeiro no campo de concentração.

Sua Inglaterra de faz de conta é sustentada sob o fio de uma navalha em uma terra longínqua e repleta de tensões. O segundo mundo que ele conhece é o mundo das ruas, que surge como um choque. E o terceiro é aquele que surge moldado pela sua fantasia, mesclado com a realidade do campo de concentração para onde é enviado, e onde se relaciona com uma nova sociedade, formada por britânicos e americanos, especialmente pelo seu ídolo, Basey ( John Malkovich ).

Durante sua passagem por esses três mundos, Spielberg pincela as descobertas de Jim sempre alimentadas pelo amor incondicional que ele nutre por aviões. Faz uma homanegam a “...E O vento Levou”, com um imenso pôster do filme onde a cena do incêndio em Atlanta pintada no cartaz compõe um paralelo interessante com as ruas da cidade destruídas pelo avanço japonês. Essa pequena composição é mais interessante do que as inúmeras cenas em que Spielberg, de forma desnecessária e superficial, cria seqüências de beleza plástica vazias. Dessa síndrome nem a trilha de John Williams consegue se desvencilhar – apesar de pomposa, ela deixa claro a vontade do filme de ser maior do que realmente é.


Mas é interessante lembrar que mesmo seqüências que soam forçadas são importantes porque determinam que Spielberg constrói seu filme sobre um ponto de vista fantasioso, sob a visão de Jim. É uma indicação muito sutil, mas que vai se cristalizando pouco a pouco. A cena de Jim prestando continência e sendo retribuído por 3 pilotos japoneses é um exemplo. Esse tipo de reação impensável à determinadas situações reflete que aquela realidade é a realidade criada pelo seu protagonista, sua bolha, sua válvula de escape. E nesse mundo, as coisas acontecem para alimentar a visão idealista de Jim, ainda que ela soe inverossímil – e a comprovação dessa tom disfarçado como realidade vem no piloto que, sorrindo abana para Jim enquanto bombardeia o campo de pouso japonês ao lado do campo de concentração. É uma visão lírica da guerra mesclando realidade e fantasia. É quase como uma coleção de lembranças que, por mais que se saiba serem irreais, sejam tão palpáveis ao verdadeiro protagonista, o JJ Ballard que escreveu a história autobiográfica e colaborou no roteiro.

Por trás das cenas criadas quase sob encomenda para o ápice do sentimentalismo – em muitas das vezes totalmente barato – de Spielberg existe a todo instante um murmúrio que sussurra ao espectador, como que dito pelo próprio Ballard: “Ei, você pode achar que não cola, mas é assim que EU me lembro daquele tempo, quarenta anos atrás. São as MINHAS lembranças de garoto de uma época totalmente surreal para uma criança”.

É baseado nessas idéias que “Império do Sol”, se assim compreendido, pode deixar de ser excessivamente tolo e exagerado, e se enquadrar quase como um sonho relembrado, e não um filme real de guerra. Não é. Provavelmente, nunca foi, apesar de algumas vozes contrárias.
É uma lembrança surreal com quase três horas de duração, como as que nós mesmos temos de certos eventos que, com o passar do tempo, por mais que jurem ter sido diferentes, acabem se transformando em memórias que nós construímos e alimentamos. E aí nem adianta dizerem que não foi bem assim. Para Ballard, aquele piloto realmente acenou para ele durante o bombardeio, os soldados japoneses realmente lhe prestaram continência e por alguns instantes, ele jurou que a bomba atômica era a alma de uma recém falecida subindo aos céus. Essa é – acima das tentativas extremamente forçadas do diretor – a grande beleza que se sobressai de “O Império do Sol”, além da presença forte de Christian Bale. Seu olhar destroçado na cena final cria um momento que é difícil de ser ignorado e vale mais do que todas as criações supostamente engrandecedoras do diretor nas quase três horas anteriores.

3 Comentários:

  1. Anônimo disse...

    Fabio, há uns quatro anos atrás, quando montei uma programação noturna na minha casa com filmes de Spielberg, acabei deixando passar a oportunidade de ver "Império do Sol" e nunca mais me animei em assisti-lo. Acho os últimos filmes de Spielberg bem decepcionantes, sejam como um todo ou apenas em alguns aspectos, e acredito que na década de 1980 nós podemos encontrar os melhores trabalhos de sua carreira. Mas confesso que não sabia que "Império do Sol" traz consigo trechos bem fantasiosos.

  2. - cleber . disse...

    Excelente, e belissimo blog, Parabéns!

    Está fita do Spielberg não tive a chance de ver ainda ... mais estou providenciando!

    Abraço!

  3. Otavio Almeida disse...

    Ótima crítica! Mas, pra mim, vale mais estrelas. Filmaço do Steven Spielberg!

    Abs!