“O Império do Sol” é menos um filme de guerra do que uma história de como um ser humano pode se esconder dentro de uma cápsula e fazer do mundo exterior não um completo desconhecido, mas um universo moldado à suas vontades, e nele sobreviver. Principalmente quando se é uma criança. No fundo, é disso que se trata aquele que talvez seja o mais descaradamente apelativo filme de Spielberg: a história de uma guerra que é transformada em um mundo particular. Em que um menino molda as circunstâncias e as interpreta de tal maneira a fazer com que as resistências se dobrem. A cápsula na qual ele se refugia é sua paixão por aviões. O mundo que ele cria é tão seu que se torna um mini-cosmo que recheia de importância coisas que pareceriam banais. Que não se veja “Império do Sol” como um filme de guerra ou a odisséia de um menino sobrevivendo aos horrores da guerra ( o mesmo tipo de frases prontas que surgem sempre que se fala no filme ). É uma história que quase foi posta a perder pela vontade de Spielberg de suplantar seu material, sem perceber o quão bom ele é.
A paixão anormal por aviões do jovem Jim, ironicamente, acaba separando-o do seu mundo, mas o mantém vivo no novo universo. É por causa de um avião, no caso um de brinquedo, que ele se separa dos pais durante a confusão que se instala em Shangai quando tropas japonesas invadem a cidade durante a 2ª Guerra Mundial. Mas é irônico constatar que são vários os “mundos” que surgem na trajetória de Jim – uma história autobiográfica do escritor JJ Ballard. O primeiro mundo irreal é aquele no qual ele vive com seus pais no meio da sociedade britânica que se forma em Shangai. Uma realidade tão fantasiosa que faz com que o garoto enxergue as mazelas nativas do local como uma curiosidade mórbida. Não à toa, ele chega a dizer em certo momento que “é inglês, mas nunca pisou na Inglaterra”. É um inglês, mas seu país soa tão falso e distante para ele que talvez por isso alimente a vontade de entrar para o grupo americano durante os anos de cativeiro no campo de concentração.
Sua Inglaterra de faz de conta é sustentada sob o fio de uma navalha em uma terra longínqua e repleta de tensões. O segundo mundo que ele conhece é o mundo das ruas, que surge como um choque. E o terceiro é aquele que surge moldado pela sua fantasia, mesclado com a realidade do campo de concentração para onde é enviado, e onde se relaciona com uma nova sociedade, formada por britânicos e americanos, especialmente pelo seu ídolo, Basey ( John Malkovich ).
Durante sua passagem por esses três mundos, Spielberg pincela as descobertas de Jim sempre alimentadas pelo amor incondicional que ele nutre por aviões. Faz uma homanegam a “...E O vento Levou”, com um imenso pôster do filme onde a cena do incêndio em Atlanta pintada no cartaz compõe um paralelo interessante com as ruas da cidade destruídas pelo avanço japonês. Essa pequena composição é mais interessante do que as inúmeras cenas em que Spielberg, de forma desnecessária e superficial, cria seqüências de beleza plástica vazias. Dessa síndrome nem a trilha de John Williams consegue se desvencilhar – apesar de pomposa, ela deixa claro a vontade do filme de ser maior do que realmente é.
Mas é interessante lembrar que mesmo seqüências que soam forçadas são importantes porque determinam que Spielberg constrói seu filme sobre um ponto de vista fantasioso, sob a visão de Jim. É uma indicação muito sutil, mas que vai se cristalizando pouco a pouco. A cena de Jim prestando continência e sendo retribuído por 3 pilotos japoneses é um exemplo. Esse tipo de reação impensável à determinadas situações reflete que aquela realidade é a realidade criada pelo seu protagonista, sua bolha, sua válvula de escape. E nesse mundo, as coisas acontecem para alimentar a visão idealista de Jim, ainda que ela soe inverossímil – e a comprovação dessa tom disfarçado como realidade vem no piloto que, sorrindo abana para Jim enquanto bombardeia o campo de pouso japonês ao lado do campo de concentração. É uma visão lírica da guerra mesclando realidade e fantasia. É quase como uma coleção de lembranças que, por mais que se saiba serem irreais, sejam tão palpáveis ao verdadeiro protagonista, o JJ Ballard que escreveu a história autobiográfica e colaborou no roteiro.
Por trás das cenas criadas quase sob encomenda para o ápice do sentimentalismo – em muitas das vezes totalmente barato – de Spielberg existe a todo instante um murmúrio que sussurra ao espectador, como que dito pelo próprio Ballard: “Ei, você pode achar que não cola, mas é assim que EU me lembro daquele tempo, quarenta anos atrás. São as MINHAS lembranças de garoto de uma época totalmente surreal para uma criança”.
É baseado nessas idéias que “Império do Sol”, se assim compreendido, pode deixar de ser excessivamente tolo e exagerado, e se enquadrar quase como um sonho relembrado, e não um filme real de guerra. Não é. Provavelmente, nunca foi, apesar de algumas vozes contrárias.
É uma lembrança surreal com quase três horas de duração, como as que nós mesmos temos de certos eventos que, com o passar do tempo, por mais que jurem ter sido diferentes, acabem se transformando em memórias que nós construímos e alimentamos. E aí nem adianta dizerem que não foi bem assim. Para Ballard, aquele piloto realmente acenou para ele durante o bombardeio, os soldados japoneses realmente lhe prestaram continência e por alguns instantes, ele jurou que a bomba atômica era a alma de uma recém falecida subindo aos céus. Essa é – acima das tentativas extremamente forçadas do diretor – a grande beleza que se sobressai de “O Império do Sol”, além da presença forte de Christian Bale. Seu olhar destroçado na cena final cria um momento que é difícil de ser ignorado e vale mais do que todas as criações supostamente engrandecedoras do diretor nas quase três horas anteriores.
Fabio, há uns quatro anos atrás, quando montei uma programação noturna na minha casa com filmes de Spielberg, acabei deixando passar a oportunidade de ver "Império do Sol" e nunca mais me animei em assisti-lo. Acho os últimos filmes de Spielberg bem decepcionantes, sejam como um todo ou apenas em alguns aspectos, e acredito que na década de 1980 nós podemos encontrar os melhores trabalhos de sua carreira. Mas confesso que não sabia que "Império do Sol" traz consigo trechos bem fantasiosos.
Excelente, e belissimo blog, Parabéns!
Está fita do Spielberg não tive a chance de ver ainda ... mais estou providenciando!
Abraço!
Ótima crítica! Mas, pra mim, vale mais estrelas. Filmaço do Steven Spielberg!
Abs!